quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Mário Quintana e o narciso escusado


Mário Quintana e o narciso escusado[1]



Profa. Dra. Raquel R. Souza

Programa de Pós-graduação em Letras / FURG


            Muito já se falou, mas não há como começar sem mencionar o centenário de Mário Quintana, se ele ainda estivesse vivo. Vou abandonar o homem de cem anos e me deter na poesia de Mário Quintana, esta sim, sem comemorações marcadas por uma cronologia que ela, a poesia mesma, supera com boa tranqüilidade. Minha leitura vai ser determinada por outras questões, as quais têm comparecido com boa freqüência em minhas pesquisas. Refiro-me à auto-representação com manifestações autobiográficas, sem que seja propriamente autobiografia. É daí que vem meu interesse por Narciso.

Para este momento, pretendo priorizar a reconstrução de um olhar que sobrepaira o próprio eu-lírico e que, ao mesmo tempo, se manifesta como uma marca na sua geração. É forçoso apontar que a poesia produzida pós Semana de Arte Moderna apresenta traços bastante característicos relativos à errância identitária. Do ponto de vista individual, essa busca identitária assume imagens sobre a infância, sobre a velhice, sobre as deformidades corporais, etc. Corrobora nessa persecução do eu-lírico uma certa uniformidade temática – o mito de narciso. A poesia de Mário Quintana apresenta essas características. A recorrência ao mito de Narciso, portanto, guiará meu olhar. Apenas uma observação: vou tratar de poemas retirados de Apontamentos de História Sobrenatural, livro publicado em 1976, quando o autor já podia ser considerado um homem na terceira idade, o que de certa forma direciona a leitura para elementos autobiográficos, pois é sabido que a madureza chama a memória.


O MITO E SUAS RECONFIGURAÇÕES


Os mitos, cada vez mais, têm se tornado material fecundo para tentativas de desvendamentos de procedimentos, modos de visões e natureza humanas. Parece óbvia essa afirmação, mas nem sempre foi assim. Gilbert Durand, em um pequeno volume intitulado Imaginário, traça um breve e significativo resgate dessas nem tão novas tendências contemporâneas. As Ciências, desde os inícios do século XX, com os impactos causados com a relatividade de Einstein, e posteriormente com as teorias relativas ao Big Bang e com as teorias quânticas das cordas e das supercordas, que abalaram as concepções da física tradicional sobre os conceitos de realidade, as Ciências da matéria já abandonaram uma posição purista e racionalista, cujos princípios lógicos remontavam à Aristóteles e, depois, Descartes, que propunham o monoteísmo da razão, cada qual em seu contexto histórico. Por outro lado, pode-se observar que o imaginário tem sido referência para muitos cientistas[2]. No campo das Ciências Humanas, onde nos colocaram, o mesmo tem se dado. O próprio Durand trabalhou insistentemente nesse caminho. Relativamente ao mito e suas inserções nas culturas humanas, ele observou que no decurso do tempo, os mitos se rearticulam, engordam e emagrecem, de acordo com as premências do momento em que são reatualizados. Durand chamou esse processo de “bacia semântica”. Não se trata, aqui, de analisar todas as seis etapas cronológicas irregulares, sobre as quais se baseia a teoria formulada pelo antropólogo. Mas elas são: escoamento, separação das águas, confluências, nome do rio, ordenamento das margens e meandros e deltas. Interessante é reparar que essa metáfora potamológica dá conta dos processos de reatualizações dos mitos. Durand diz que


Não há mito inicial, puro (...). Qualquer mito não é senão o conjunto de suas lições, poder-se-ia mesmo dizer de suas leituras(...) O mito decompõem-se em alguns mitemas indispensáveis que lhe conferem sincronicamente o sentido arquetípico, mas, diacronicamente, ele é apenas constituído pelas lições circunstanciadas por esse acolhimento, essa leitura muito particularizada (...) Há que sublinhar este paradoxo, em que a permanência só é conferida pelas variações. (DURAND; 1996:155).


Esse movimento, que pressupõe perdas de mitemas e ganhos de mitemas, ao longo dos tempos, tem se mostrado especialmente elucidativo quando se trata de poesia, e no nosso caso, a poesia modernista, que encerra como presença temática preponderante a especulação do eu pelo viés do espelho e eufemismos a ele relativos, e pelo espelhamento da metapoesia, formando ambas as faces de uma mesma moeda temática.



A FÁBULA  

           

Apesar de ser bastante conhecido o mito de narciso, até por conta das banalizações que vem sofrendo nas artes de consumo imediato, no ambiente literário sabe-se que o mito é inaugurado em Metamorfoses, do poeta latino Ovídio. No poema, o episódio relata a pequena e malfadada história do jovem efebo. Narciso é fruto da união forçada de Céfiso (deus-rio) com a ninfa Liríope. Narciso nasceu com extrema beleza, o que deixou sua mãe muito preocupada com seu destino, levando-a a consultar o adivinho Tirésias, que, perguntado sobre a vida do rapaz responde que ele viverá muito se ele não se conhecer. Ele segue, então, solitariamente. Ocorre que a ninfa Eco apaixona-se perdidamente pelo efebo e o segue de longe em suas caçadas, mas é incapaz de pronunciar o nome do amado porque ela não possui voz própria – ela só pode repetir as últimas palavras pronunciadas por Narciso. A ninfa foi castigada por Hera, esposa de Zeus, porque a jovem, com sua tagarelice, distraía a deusa enquanto Zeus fazia suas conquistas amorosas com outras ninfas. Ao descobrir o estratagema, a deusa a castiga, condenando-a a só repetir as últimas sílabas das palavras que ouvia. Por isso Eco não podia expressar seu amor por Narciso. Um dia o rapaz percebe que alguém o segue e que repete suas últimas palavras. Chama-a e pergunta por que ela o evita. Ao tentar responder Eco apenas consegue repetir as palavras do amado e, desesperada por não conseguir se fazer entender, abraça-o e é rejeitada. Narciso lhe diz: “Para longe com seus braços, eu prefiro morrer a deixar que você me toque”. Sendo rejeitada, a moça refugia-se nos bosques e montanhas e passa a morar sozinha até que, sofrendo as torturas do amor rejeitado, definha e se transforma em pedra, ficando somente o lamento da sua voz que repete as sílabas finais das palavras.



As outras ninfas também tentaram se aproximar do rapaz e foram repelidas, por isso invocaram a justiça, pedindo a Nêmesis que as vingassem: “que também ele possa amar e jamais possuir o objeto de seu amor”. Atendendo aos pedidos, depois de uma caçada, a deusa conduz Narciso a um recanto no qual, ao sentir sede, ele se inclina sobre uma fonte de águas cristalinas. Ao beber da água virgem, fica encantado com a imagem que vê nas águas e se apaixona por tão bela figura. A partir daí não sai de perto das águas da fonte Téspias sempre buscando um contato com a imagem adorada. Passa a não se alimentar e começa a definhar. Mesmo sabendo que se tratava de sua própria imagem o que via refletida nas águas límpidas, morre perdidamente apaixonado por si mesmo sem jamais conseguir tocar-se. No lugar onde jazeu nasceu uma linda flor de poderes inebriantes que recebeu o nome de narciso.


Originalmente, todo mito encerra uma aprendizagem, e este ilustra o poder de Nêmesis que restabelece a justiça universal. Narciso foi punido por ter desejado subtrair-se à lei comum e por ter se recusado a amar alguém.

 

O MOVIMENTO POTAMOLÓGICO


A literatura da Idade Média registra episodicamente o aparecimento do mito de narciso em composições literárias, mas é somente a partir XVIII que o motivo reaparece, já contando com algumas subversões, ou acréscimos dos mitemas originais, contados por Ovídio. Essas intervenções literárias provocam, no mais das vezes, modificações nos mitemas, bem como priorizam certos segmentos narrativos do mito “original” em detrimento de outros. Assim, o mito de narciso tem se configurado, a partir da modernidade, ou “modernidade dura”, como chama Zygmunt Bauman a esse primeiro momento da modernidade, como caso exemplar para a necessidade crescente de constituição identitária. Tanto o plano coletivo (como as noções de nacionalidade), quanto o plano individual (como as faces de um indivíduo) buscam nos mitemas que compõem o mito um alicerce sobre o qual os poetas constroem seus respectivos imaginários identitários. Por outro lado, esse imaginário está governado por questões sociais de imensas implicações, cujo assunto identidade tem mantido calorosas discussões contemporaneamente. Assim, convém lembrar que a idéia de identidade nacional, na vigência do século XIX, não foi naturalmente gestada e incubada na experiência humana, mas sim imperativamente colocada às pessoas. O Estado moderno a criou como ficção e daí decorre a individualidade crescente (BAUMAN; 2005).


O Modernismo Brasileiro, por vários aspectos, quer conscientes ou apenas fruto do movimento pendular que se observa na historiografia literária brasileira em relação à certas características, o Modernismo é um reverso ou uma paródia do Romantismo Brasileiro. As construções de identidade nacional adquirem pluralidade, assim como a identidade individual, que igualmente passa a cogitar outras faces. Naturalmente corroboraram para esse alargamento conceitual muitas outras perspectivas que não somente a sociologia. O fato é que as identidades, de grupo e individual, ambas passam a sofrer de uma grande instabilidade, pois entendem que a resposta da pergunta “quem sou eu?” necessita de uma série de referências aos vínculos que ligam o “eu” a outras pessoas. Sem dúvida, uma das maiores contribuições para a persecução do eu foi dada pela Psicanálise, especialmente Freud e suas já famosas divisões tripartidas da mente humana – a consciência, sub-consciência e inconsciência, assim como id, ego e superego.


No caso da poesia modernista brasileira, para começar a delinear melhor meu objeto de estudo para este momento, e deixando um pouco de lado as questões relativas à identidade nacional, a lírica brasileira tem sido marcada por um movimento especular que se biparte, mas que não se exclui. Mediando essas duas instâncias temáticas, ou seja, o duplo do indivíduo e a metapoesia, aparece o espelho, objeto que propicia a transcendência desde os barrocos, aos românticos e aos modernistas. Assim, o movimento especular se realiza em duas instâncias reflexivas, qual seja, o eu-lírico que se mira e não se encontra como se imaginava, e a poesia que se reflete no próprio fazer poético, tornando-se, ela mesma, um assunto inesgotável, porque encerra uma outra face da questão identitária, não a do homem propriamente dita, mas a do poeta enquanto produtor de arte e de conhecimentos.


A partir do tema do duplo, por exemplo, a poesia de Mário Quintana tem sido revisitada com uma certa freqüência em função da polarização bastante evidente entre o velho e a criança. Aliás, essa imagem pueril de “criança-poeta”, ou “poeta-criança”, que tem sido veiculada encerra desconhecimento dos ardis do poeta. É tentador ver assim, porque a simplicidade excessiva fecha a questão, mas parece-me que só isso não basta. Claro, a voz da infância, tema romântico por excelência, e por isso mesmo muito presente na poesia dos modernistas, remete à um movimento especular do sujeito – quando lembro o passado, única certeza ainda que relativa, a infância devolve uma certa tranqüilidade e uma certa segurança. Natural, então, que o velho se volte para suas reminiscências. Julgo, entretanto, que em Mário Quintana a infância tem uma implicação mais profunda do que essa, um tanto rasa para quem era conhecido por suas artimanhas e por seus aforismos irônicos. Bachelard dizia que na idade do envelhecimento, a lembrança da infância devolve-nos aos sentimentos finos (BACHELARD, 1988:110). E mais: a infância é o poço do ser. É nela que se encontram a memória e a imaginação, sem as quais não se alcança a imagem de sua própria infância.


            Por outro lado, o resgate pela via da imaginação criadora acerca da infância, remete ao mito de narciso, ou melhor, a uma reescrita do mito de narciso, redimensionando-o a partir das necessidades modernas de se ajustar identidades. Com esta proposta, gostaria de reavaliar a opinião de Tânia Carvalhal, para quem Mário Quintana não tinha apreço pela própria imagem em gesto narcisista; o poeta não se detém em contemplações nem em especulações existenciais (CARVALHAL, 2005). Mais adiante, no mesmo estudo ela afirma que a figura resultante de uma representação não é unitária e, por isso mesmo, não cabe numa única representação simbólica, sendo construída, portanto, sobre um processo de projeções: a imagem final é a do menino, que convive com a do homem, recoberta pela do pai, que, por sua vez, se projeta sobre a imagem do poeta (CARVALHAL, 2005).


Pois é justamente essa particularidade que coloca o poeta como homem de seu tempo e, portanto, perscrutor de uma identidade individual pluralizada, redimensionando o mito. Ele sabia que a imagem totalizadora não é possível. A imagem da infância, ou melhor, as imagens que a memória cria sobre a própria infância, são revelações especulares do velho que se busca, porquanto escreve sobre o assunto, mas que apesar das semelhanças, não lhe devolvem as respostas às perguntas implícitas. Trata-se, enfim, de um narciso que, modificado pelas vicissitudes dos tempos decorridos desde o narciso ovidiano, busca uma outra via de conhecimento que não o reflexo direto e na mesma temporalidade. O mito, nestes momentos de alta modernidade, de modernidade líquida, de sobremodernidade, de pós-modernidade, o mito de narciso incorporou outros mitemas e abandonou outros tantos. De mera instrução para não se desviar da lei comum ao esquivar-se ao amor reprodutivo e da lei comum, o século XX redimensiona o protagonista, colocando-o nas mais diversas situações de ausência de referenciais imediatos que lhe forneçam uma identidade, bem como altera a sua substância juvenil. É difícil, portanto, saber se o mito de narciso é que conforma uma poesia sobre a infância no espelho da velhice, ou se é justamente por se colocar como uma poesia especular antípoda entre o velho e a criança que o mito passa a ser recorrente.


            A recorrência ao mito de narciso na poesia de Quintana é significativa. Mas não como uma imagem totalizante, na qual se possam ler os mitemas mais importantes, ou mais reconhecíveis, e ver uma narrativa completa. Não se pode esquecer que a época de Mário é marcada pela fragmentação, ou pela multiplicação dos pedaços que antes compunham um todo facilmente montado como se fosse um quebra-cabeça. As partes que volta e meia compõem as identidades do poeta são encabeçados pela figura do pai (“O velho do espelho”), por objetos insólitos para essa relação, tais como o baú (“A alma e o baú”), retratos de parede das avozinhas (“O espelho”), elementos da natureza (“Auto-retrato”), os sapatos (“Canção de primavera”), e outros. É bom lembrar de Bauman: (...) só se pode comparar a biografia com um quebra-cabeça incompleto, ao qual faltam muitas peças (e jamais se saberá quantas). Deduz-se que a construção de uma identidade, marca mitêmica mais importante no mito para os tempos modernos e sucedâneos, assumiu a forma de um experimento que não tem fim. Por outro lado, a identidade só se estabelece como busca quando se a perde. Sempre que se ouvir essa palavra [identidade], pode-se estar certo de que está havendo uma batalha. (...) Ela só vem à luz no tumulto da batalha, e dorme e silencia no momento em que desaparecem os ruídos da refrega (BAUMAN, 2005).


A releitura de Mário passa por recortes de mitemas, que muitas vezes fazem com que nossa leitura se disperse e não perceba que por trás de sua poesia está um homem representativo do seu tempo, isto é, visceralmente multiplicado em dois ou mais imagens de si mesmo. Para isso, é preciso considerar que o mito de narciso tem sido muito caro à modernidade. A crise de identidade advinda com o agravamento da modernidade tem no mito um respaldo significativo. Em Mário, não se trata apenas do sujeito particular, mas de uma representação de humanidade muito afeita ao Brasil do século XX, como aliás, seus companheiros de geração modernista: Cecília Meireles e seus auto-retratos, Vinícius de Moraes como o homem belo e erótico, Murilo Mendes multiplicado em suas inúmeras formas de fazer poesia, Jorge de Lima e as religiões que o formaram, etc.



De Quintana, tomo um poema especial para esta perspectiva: “Canção”:



Cheguei a concha da orelha

à concha do caracol.



Escutei

vozes amadas

que eu julgava

eternamente perdidas.



Uma havia

que dentre as outras mais graves

tão clara e alta se erguia...



que eu escutei mas descobri

que era a minha própria voz:

sessenta anos havia

ou mais

que ali estava encerrada.



Meu Deus, as coisas que ela dizia!

As coisas que perguntava!

Eu deixei-as sem resposta.



As outras vozes, mais graves,

tampouco

nenhuma lhe respondia.



O mundo é um búzio oco,

menino...



mundo de vozes perdidas

e onde apenas o eco

eternamente

repete as mesmas perguntas.




Trata-se de poema de forma bastante livre, assim como a constituição dos seus versos. As estrofes são variadas, o que indica uma certa liberdade formal que certamente acompanha também uma certa liberdade temática. A primeira leitura do poema não desvenda de imediato o que o está formatando, isto é, o mito de narciso. A paráfrase, bastante simples, revela que o texto recria uma imagem, ou uma brincadeira muito comum entre as crianças, pois se trata de ouvir o marulhar do côncavo das conchas. Essa cena apresenta um pouco de movimento, seguido de um quadro estático, no qual o eu-lírico apenas ouve um som e se põe a fazer considerações que repercutem no seu pensamento. Aquilo que ouve causa-lhe surpresa, mas não o movimenta o suficiente para agir. Ao ouvir as vozes do passado em substituição do marulhar, uma delas a sua própria sessenta anos antes, fica calado e não interage com nenhuma. Conclui que o mundo é um búzio oco com as mesmas perguntas de sempre, sem as respostas de sempre. Aparentemente nada conduz nosso olhar para os mitemas de narciso, contudo é sempre bom lembrar que os poetas de origem modernista, como ele, mantêm, ao lado da metapoesia, constituindo uma das partes do duplo, a auto-persecução, material mitêmico fundamental do mito na modernidade e sucedâneos.


 A ação inicial que o poema concretiza é muito singela e remete a um contexto infantil. O eu-lírico pretende escutar alguma coisa na casca do caracol, como o fazem as crianças. São duas conchas, de materiais radicalmente diferentes – o pavilhão da orelha, que tem uma forma encaracolada para captar melhor o som, e a casca protetora da lesma cujo formato é espiralado. No poema, a cartilagem humana e a massa óssea do molusco se aproximam para unir os tempos, isto é, o presente e o passado. Sintomaticamente estas primeiras estrofes do poema são governadas por verbos no pretérito. 

O poema admite uma divisão ternária concernente aos tempos verbais empregados. Comparecem, em ordem de presença, o pretérito perfeito, o pretérito imperfeito e o indicativo presente. Essa gradação encerra uma significação muito particular de o poeta lidar com suas marcas do passado. 

A ação propriamente dita é realizada no perfeito indicativo – cheguei – indicando uma ação realizada. Esse passado se manterá fechado até o momento em que na continuidade desta ação se sobrepõe uma outra, de caráter não ativo, isto é, escutei – também no pretérito perfeito. Ocorre que essa ação encerrada no passado passa a ser relativizada com o inesperado do resultado: pela audição, o eu-lírico teve acesso a um tempo que achava enterrado. A partir do pronome relativo (“que eu julgava”), que serve justamente para relativizar as partes, o tempo verbal, ainda que no pretérito, passa a ser declinado no imperfeito, indicando uma certa continuidade da ação, diminuindo o caráter definitivo do passado. Aparecem, na seqüência, os verbos “julgava”, “havia”, “erguia”, “era”. O ato de aproximação e de ouvir as vozes do passado, que estavam reclusas na concha, determinam uma relação especular entre o homem de hoje e a criança de ontem. A quarta estrofe coloca o inusitado da descoberta. O menino que fora retorna não pela imagem visual, típica no mito de narciso, mas pela imagem auditiva: “que eu escutei mas descobri / que era a minha própria voz: / sessenta anos havia / ou mais / que ali estava encerrada.

             Sem dúvida, muitas outras questões estão presentes neste poema de Quintana. Mas gostaria de apontar que a infância, nele, não serve apenas como resgate de um tempo feliz, à moda romântica. Ela é o decalque do original. Como cópia, deveria estar à serviço da perscrutação, no entanto o eu-lírico é categórico. Reconhece-se na voz do passado, mas nega-se ao diálogo. Certamente, o próprio poema reflete sobre essa negativa. A última estrofe determina, pela declinação temporal aliada à significação dada à Eco, a incompatibilidade entre aquilo que foi com aquilo que é. Assim, o poeta recoloca e redimensiona um mitema muito caro ao mito de narciso, qual seja, a Eco, ninfa que desencadeia uma boa parte da dissonância identitária do rapaz. No poema, destituída de tamanha importância, resta-lhe apenas ser uma representação, porquanto está substantivada, de uma repetição inócua e estéril, pois não é capaz de responder, apenas de repetir as perguntas. Esta terceira e última parte do poema está declinada no presente do indicativo, e o faz através de um verbo de ligação, cuja significação se concentra em definir uma existência: “O mundo é um búzio oco”.

            Há, no final do poema, um sentido de pessimismo que se revela na desistência do eu-lírico em buscar sua identidade perdida da voz infantil (passados sessenta anos ou mais) que a concha do caramujo e da sua orelha lhe trazem de volta. As perguntas que sua própria voz lhe fazem ficam sem resposta e sem atenção. Apesar de saber sua, a voz do passado não lhe pertence mais. A descontinuidade entre o original e o decalque parece não ter solução.

            A mito de narciso, neste poema, perde muitos de seus mitemas “originais”, adaptando-os e redimensionando-os para um outro “ensinamento”. Não há mais a presença direta da água como espelho sobre o qual o sujeito se debruça para se ver. A Fonte Téspia assume uma outra configuração. A “concha”, cujo simbolismo está relacionado à água, à fecundidade, à libido, ao feminino tem uma abrangência particular e individual, e sua versão como “búzio”, que também se liga aos mesmos arquétipos da lua-água, da gestação-fertilidade compreende um todo maior que ultrapassa a medida individual – o mundo. No entanto, ambos elementos simbólicos compõem, no poema, uma expressão de significado oximórico, pois o búzio é produtor do som primordial e originário das águas primevas (esse caráter primordial está colocado, implicitamente, no tempo a que o eu-lírico localiza nas vozes ouvidas – sua infância), bem como representa a noção do eu, da consciência individual, através do desenvolvimento espiralóide de suas formas, remetendo, assim, às grande evoluções interiores e exteriores (CHEVALIER; 1997). 

Quintana diferentemente de muitos poetas de sua geração, renega o auto-conhecimento pela via especular. No mito, o espelho sobre o qual se dá o enamoramento e o auto-reconhecimento é feito de água, a Fonte Téspia, buscando nela a imagem visual necessária para reconhecer o eu-outro. Quando Narciso consegue identificar-se como imagem e decalque, morre de inanição ao lado das águas. No poema de Quintana, o espelho não se faz de água, mas de ar, já que a Fonte se transmuta em concha e dela saem as vozes em cima das quais o eu-lírico reconhece-se, passados sessenta anos. A imagem que propicia o auto-reconhecimento é auditiva, e não visual. Ocorre que esse narciso se recusa a se ver e a se ouvir, isto é, não quer saber de eu e eu-outro. Não morre explicitamente como o do mito, mas sua recusa equivale a uma espécie de morte, na qual se percebe um certo conformismo diante das indagações humanas. De forma inusitada, na poesia de Quintana, a poesia de Apontamentos de História Sobrenatural, há reescrituras do mito, nas quais o poeta prioriza certos segmentos, como neste caso a relação especular, mas igualmente os modifica alterando suas substâncias, como da água passa ao ar, ou da imagem visual passa à auditiva. Por outro lado, a persecução intensa que vem marcando o mito desde a modernidade, nele deixa de ser alvo a ser atingido, porque a imagem especular, descoberta sempre com surpresa, é negada. Trata-se, enfim, de um narciso escusado, porquanto se recusa a um dos mitemas mais significativos do mito para a modernidade, qual seja, esgaravatar a si mesmo.   





  • poemas que acompanham esta leitura sobre o mito de narciso em Quintana:





O espelho



E como eu passasse por diante do espelho

não vi meu quarto com as suas estantes

nem este meu rosto

onde escorre o tempo.



Vi primeiro uns retratos na parede:

janelas onde olham avós hirsutos

e as vovozinhas de saia-balão

como pára-quedistas às avessas que subissem do fundo do tempo.

O relógio marcava a hora

mas não dizia o dia. O tempo,

desconcertado,

estava parado.



Sim, estava parado

em cima do telhado...

como um catavento que perdeu as asas!





O auto-retrato



No traço que me faço

- traço a traço –

às vezes me pinto nuvem,

às vezes me pinto árvore...



às vezes me pinto coisas

de que nem há mais lembrança...

ou coisas que não existem

mas que um dia existirão...



e, desta lida, em que busco

- pouco a pouco –

minha eterna semelhança,



no final, que restará?

Um desenho de criança...

corrigido por um louco!





Mundos



Um elevador lento e de ferragens belle époque

me leva ao antepenúltimo andar do Céu,

cheio de espelhos baços e de poltronas como o hall

de qualquer um antigo Grande Hotel,



mas deserto, deliciosamente deserto

de jornais falados e outros fantasmas da TV,

pois só se vê, ali, o que ali se vê

e só se escuta mesmo o que está bem perto:



é um mundo nosso, de tocar com os dedos,

mas este – onde a gente nunca está, ao certo,

no lugar em que está o próprio corpo



mas noutra parte, sempre do lado de lá!

não, não este mundo – onde um perfil é paralelo ao outro

e onde nenhum olhar jamais se encontrará...





Vidas



Nós vivemos num mundo de espelhos,

mas os espelhos roubam nossa imagem...

quando eles se partirem numa infinidade de estilhas

seremos apenas pó tapetando a paisagem.



Homens virão, porém, de algum mundo selvagem

e, com estes brilhantes destroços de vidro,

nossas mulheres se adornarão, seus filhos

inventarão um jogo com o que sobrar dos ossos.



E não posso terminar a visão

porque ainda não terminou o soneto

e o tempo é uma tela que precisa ser tecida...



mas quem foi que tomou agora o fio da minha vida?

que outro lábio canta, com a minha voz perdida,

nossa eterna primeira canção?!





O velho do espelho



Por acaso, surpreendo-me no espelho: quem é esse

que me olha e é tão mais velho do que eu?

Porém, seu rosto ... é cada vez mais estranho...

meu Deus, meu Deus... parece

meu velho pai! – que já morreu!

Como pude ficarmos assim?

Nosso olhar – duro – interroga:

“O que fizeste de mim?!”

eu, Pai?! Tu é que me invadiste,

lentamente, ruga a ruga... Que importa?! Eu sou, ainda,

aquele mesmo menino teimoso de sempre

e os teus planos enfim lá se foram por terra.

Mas sei que vi, um dia – a longa, a inútil guerra! –

Vi sorrir, nesses cansados olhos, um orgulho triste...







[1] Texto apresentado no Seminário sobre os Cem anos de Mário Quintana, FURG, novembro de 2006.
[2] Cf. GLEISER, Marcelo. O fim da terra e do céu – o Apocalipse na Ciência e na Religião. São Paulo: Cia das Letras, 2001.

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