terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

um breve estudo sobre o mito de narciso em cecília meireles

(este ensaio foi apresentado sob forma oral no seminário internacional de história da literatura - pucrs, em outubro de 2005, e publicado nos respectivos anais)

A busca de um retrato nem sempre natural:

Um breve estudo sobre o mito de narciso em Cecília Meireles[1]



            O mito de narciso tem se configurado, a partir da modernidade, como caso exemplar para a necessidade crescente de constituição identitária. Tanto o plano coletivo (como as noções de nacionalidade), quanto o plano individual (como as faces de um indivíduo) buscam nos mitemas que compõem o mito um alicerce sobre o qual os poetas constroem seus respectivos imaginários identitários. Ocorre que a poesia brasileira do século XX não suporta mais uma organização sistematizada e homogeinizante do ponto de vista tradicional encontrável na maioria das histórias literárias que se tem produzido. Priorizar o aspecto temático em detrimento de uma datação rígida e pontual, bem como de uma aglutinação de nomes em torno de uma estética literária, precisa ser considerada. Assim, é forçoso apontar que a poesia produzida pós Semana de Arte Moderna apresenta traços bastante característicos relativos à errância identitária. Do ponto de vista individual, essa busca identitária assume imagens sobre a infância, sobre a velhice, sobre as deformidades corporais, etc. Corrobora nessa persecução dos eus-líricos uma certa uniformidade temática – o mito de narciso. A poesia de Cecília Meireles apresenta essas características. Assim, esse ensaio pretende discutir algumas marcas relativas ao mito de narciso na produção ceciliana.



A POESIA DOS ESPELHOS

            A poesia de Cecília Meireles, sem dúvida, órbita poucos temas e/ou assuntos. O que mais interessa à poeta é a poeta. O narcisismo conforma as mais diversas imagens propostas pelo eu-lírico. Ora é a nuvem que lhe serve de espelho, ora são as águas salgadas que lhe devolvem imagens distorcidas de seu rosto marcado pelas feridas do tempo. O espelho, para Cecília, assume formas diversas e inusitadas, mas sempre carregadas de uma melancolia aliada a uma certa resignação feliz em ver-se diferente do decalque que o reflexo especular lhe oferece. Eis um poema exemplar:




1.                 Procurarei meu rosto na água, nos vidros, nos olhos alheios.

2.                 Duvidarei de mim, que me contemplo,

3.                 Da água, dos vidros, dos olhos que me refletem.



4.                 Procurarei meu rosto com as mãos. Como os cegos

5.                 E sempre me sentirei a mesma e sempre me encontrarei diferente.



6.                 Procurarei meu rosto dentro da terra, no chão do planeta onde vou ficar.



7.                 Procurarei meu rosto num lugar eqüidistante de todos os planetas.



8.                 Em que pólo poderei te alcançar, ó meu rosto, incerto e fixo,

9.                 Ó fugitivo predeterminado,

10.             Ó eterno mortal?



11.             Procuro-te – para sentir o molde de onde vieste,

12.             Ó cópia dolorida.



13.             Que conseguiste, afinal, preservar da essência a que pobremente serves?[2]



            Este poema parte de uma visão narcísica para acrescentar ao mito alguns elementos na composição do espelho. Mas antes, convém observarmos o que o texto conta. Eis uma paráfrase: o eu-lírico, marcado em primeira pessoa no verso 01, afirma que procurará seu rosto na água, nos vidros e nos olhos dos outros e, feito isso, duvidará daquilo que encontrar; continuará procurando seu rosto com o tato, mas isso também não lhe satisfará porque se sentirá igual e diferente; continuará buscando seu rosto dentro da terra, no planeta, e em um lugar central do universo. Ao cabo dessas ações sem resultados satisfatórios, o eu-lírico pergunta ao seu rosto em que extremo do planeta será possível encontrá-lo, já que se trata de objeto volátil. Passa, então, à explicação de tal busca: desejo de sentir os contornos que delimitam o rosto, chamado de “cópia dolorida”. Ao final, com leve tom de desconforto, pergunta ao interlocutor, isto é, o rosto, o que ele conseguiu manter de essencial em relação ao original a que sempre serviu.

            Trata-se de poema publicado postumamente, no volume intitulado Dispersos. Entretanto, pela datação, isto é, abril de 1960, podemos fazer algumas observações. A primeira diz respeito ao verso que, contrariamente à moda do concretismo e sucedâneos, apresenta discursividade, apesar deles não obedecerem nenhum esquema rímico predeterminado, assim como estrofação, rimas e ritmo. De certa maneira, isso confirma a personalidade poética de Cecília, que não se submetia a programas estético-literários nem à modismos que levavam à uma espécie de guetização. O poema é construído em versos brancos e livres, com estrofação igualmente livre, respeitando uma outra sintaxe que não àquela imposta pelas formas fixas. Assim, o ritmo é comandado por uma outra voz que não a do metro: os versos longos recebem o ritmo do pensamento encadeado que busca uma lógica enumerativa, no entanto, por serem longos denotam uma certa angústia e na necessidade de externá-la. Esse ritmo distendido só é quebrado quando da presença de formas vocativas, lembrando um recurso da poesia romântica. A quebra do ritmo do lamento dos versos longos com a inserção do ritmo mais curto confere uma forma dual ao poema e esta dualidade se repete formalmente também no recurso ao diálogo que o poema demonstra: eu e tu, sendo esse tu um eu-outro denominado de “rosto”. Há um certo gosto modernista na estrutura do poema, porque os versos polimétricos encerram, nesse caso, uma coloquialidade expressa pelo vocabulário simples, o que não impede a poeta de conjugar as palavras na forma oximórica (“fugitivo predeterminado”, “eterno mortal”).

            A fortuna crítica de Cecília joga certas etiquetas que não são fora de contexto, mas que também não dão conta de apreender sua poesia. Cecília é conhecida como “poeta do efêmero”, solitária e intimista, afastada do drama coletivo, etérea, alienada, etc. recentemente, com relação a este último adjetivo, há uma certa crítica que busca valorizá-la em função de um engajamento político da Cecília-jornalista e pedagoga, em oposição à poeta de estados de alma. Por outro lado, é pertinente propor que sua poesia adere a um “movimento” que não conjuga fórmulas e tampouco preconiza alguma coisa em torno de programas estético-literários, através dos quais a poesia brasileira vem sendo estudada. É preciso fazer a revisão da história da literatura a partir de outras balizas que permitam a liberdade no trato com a arte. Nesse sentido, é bom lembrar que a poesia brasileira do século XX é marcada por dois movimentos intensos que se complementam: a auto-referencialidade do eu-lírico e a auto-referencialidade da arte. A obra de Cecília também permite sua inserção nessa perspectiva.

Resultado de uma aguda crise do sujeito, e conseqüentemente da arte, a busca identitária tem sido explorada com matizes diversos e em Cecília esse movimento narcísico apresenta implicações estético-ideológicas inusitadas.



NARCISO ENCANTADOR

            No ambiente literário sabe-se que o mito é inaugurado em Metamorfoses, do poeta latino Ovídio. No poema, o episódio relata a pequena e malfadada história do jovem efebo. Narciso é fruto da união forçada de Céfiso (deus-rio) com a ninfa Liríope. Narciso nasceu com extrema beleza, o que deixou sua mãe muito preocupada com seu destino, levando-a a consultar o adivinho Tirésias, que, perguntado sobre a vida do rapaz responde que ele viverá muito se ele não se conhecer. Ele segue, então, solitariamente. Ocorre que a ninfa Eco apaixona-se perdidamente pelo efebo e o segue de longe em suas caçadas, mas é incapaz de pronunciar o nome do amado porque ela não possui voz própria – ela só pode repetir as últimas palavras pronunciadas por Narciso. A ninfa foi castigada por Hera, esposa de Zeus, porque a jovem, com sua tagarelice, distraía a deusa enquanto Zeus fazia suas conquistas amorosas com outras ninfas. Ao descobrir o estratagema, a deusa a castiga, condenando-a a só repetir as últimas sílabas das palavras que ouvia. Por isso Eco não podia expressar seu amor por Narciso. Um dia o rapaz percebe que alguém o segue e que repete suas últimas palavras. Chama-a e pergunta por que ela o evita. Ao tentar responder Eco apenas consegue repetir as palavras do amado e, desesperada por não conseguir se fazer entender, abraça-o e é rejeitada. Narciso lhe diz: “Para longe com seus braços, eu prefiro morrer a deixar que você me toque”. Sendo rejeitada, a moça refugia-se nos bosques e montanhas e passa a morar sozinha até que, sofrendo as torturas do amor rejeitado, definha e se transforma em pedra, ficando somente o lamento da sua voz que repete as sílabas finais das palavras.

As outras ninfas também tentaram se aproximar do rapaz e foram repelidas, por isso invocaram a justiça, pedindo a Nêmesis que as vingassem: “que também ele possa amar e jamais possuir o objeto de seu amor”. Atendendo aos pedidos, depois de uma caçada, a deusa conduz Narciso a um recanto no qual, ao sentir sede, ele se inclina sobre uma fonte de águas cristalinas. Ao beber da água virgem, fica encantado com a imagem que vê nas águas e se apaixona por tão bela figura. A partir daí não sai de perto das águas da fonte Téspias sempre buscando um contato com a imagem adorada. Passa a não se alimentar e começa a definhar. Mesmo sabendo que se tratava de sua própria imagem o que via refletida nas águas límpidas, morre perdidamente apaixonado por si mesmo sem jamais conseguir tocar-se. No lugar onde jazeu nasceu uma linda flor de poderes inebriantes que recebeu o nome de narciso.

Originalmente, todo mito encerra uma aprendizagem, e este ilustra o poder de Nêmesis que restabelece a justiça universal. Narciso foi punido por ter desejado subtrair-se à lei comum e por ter se recusado a amar alguém. A literatura da Idade Média registra episodicamente o aparecimento do mito de narciso em composições literárias, mas é somente a partir XVIII que o motivo reaparece, já contando com algumas subversões, ou acréscimos dos mitemas originais, contados por Ovídio. Essas intervenções literárias dão uma abrangência maior ao mito. Ocorre que tais intervenções só são possíveis por conta daquilo que Gilbert Durand chama de “bacia semântica”[3]. Metáfora muito significativa, essa idéia busca a sistematização de um processo natural nas sociedades humanas, qual seja, as transformações por acréscimo ou subtração, ou ainda, contaminação de outros mitos, que um determinado mito sofre ao longo dos anos. Em outras palavras, há um número limitado de mitos possíveis; eles, os mitos, exigem reinvenções míticas constantes e repetidas no continuum da História. È a atuação do imaginário que possibilitará as releituras dos mitos.



DOR E PRAZER NO LAGO

Uma rápida visada na poesia de Cecília já nos deixa ver a significativa presença do tema no seu imaginário. Em Dispersos, além do poema acima transcrito, são exemplos: Tão dolorida, tão dolorida (1578), Eternidade inútil (1631), Pergunto-te onde se acha a minha vida (1636), Sem corpo nenhum (1653), Espelho cego (1725), As borboletas brancas (1859), Personagem (1882), É preciso não esquecer nada (1926), entre outros; na poesia publicada, desde Viagem até Solombra, os exemplos são os mais diversos, como Retrato (232), Noções (271), Personagem (305), Canção quase inquieta (337), Auto-retrato (456), Mulher no espelho (533), Tempo viajado (616), Minha sombra (465), O rosto (663), Pastora descrida (679), entre tantos poemas ao longo de sua obra.

Ainda dentro dessas observações, são pertinentes as idéias de Bachelard[4] a respeito dos quatro elementos em torno dos quais os poetas entendem o mundo: terra, ar, fogo e água (cuja origem se localiza nos pré-socráticos). A poesia ceciliana parece ser marcada sobretudo pela presença da água, e em alguns momentos pelo ar . Mas é preciso ressaltar que, para Bachelard, os elementos cosmogônicos servem para concretizar a imaginação material dos poetas. Assim, a água, para Cecília, lhe fornece a base sobre a qual ela pensa, sente e vê o mundo. Por outro lado, a água é elemento essencial para o mito de narciso: seu pai é feito de água, sua mãe é uma ninfa, cuja relação com a água é intensa, o espelho do rapaz é água, enfim, trata-se de elemento que adquire a qualidade de physis no mito. A água, como mitema, é forte e marca, nas suas mais variadas formas e sabores, o imaginário ceciliano, inclusive na perspectiva de releituras do mito. Ela vai aparecer como espelho, como retrato pintado sobre tela, como nuvem, como símbolo de completude e espaço de reencontros primordiais.

Na poesia, segundo Jean Burgos[5], o imaginário dos poetas vai sendo construído a partir de esquemas comandados pelos verbos. São eles que nos permitirão observar melhor a construção mais íntima do poema para a partir daí observarmos a essência da poesia de Cecília, bem como seu procedimento para a concretização poemática, isto é, como ela realiza o poema e como busca resolver os conflitos decorrentes dessa errância identitária, característica de nossos tempos modernos.

O poema admite algumas abordagens. Uma delas é dividi-lo em momentos nucleares, momentos esses demarcados pelos tempos verbais. Futuro do indicativo, presente do indicativo e pretérito perfeito do indicativo: “procurarei”, “procuro-te”, “conseguiste” – respectivamente. Ou seja, o poema apresenta uma divisão ternária, mas em uma ordem que subverte o modelo temporal aristotélico.

            O poema começa com a certeza do acontecimento – procurarei (futuro de presente); ocorre que contrariamente à ação do verbo anafórico há implicitamente uma idéia de fracasso da ação, daí os versos relativos ao futuro (01-10) percorrerem vários ambientes, que vão desde a água em formas eufêmicas (vidros e olhos), passando pela superfície do objeto procurado (verso 4), as entranhas magmas da Terra (verso 6), o ponto de equilíbrio entre os extremos do Universo/Cosmo (verso 7) até na dicotômica posição humana no globo terrestre (pólo). Corrobora, igualmente, para essa idéia de fracasso a relativização da ação do verbo “procurar” expressa na forma interrogativa da locução verbal “poderei alcançar”, indicando apenas a possibilidade, porque o objeto da procura é inapreensível: incerto e fixo, fugitivo predeterminado, eterno mortal. Assim se dá, também, nos primeiros versos marcados pela certeza do verbo procurar – quem procura, busca encontrar-se com o objeto desejado; entretanto, esse objeto desejado, e ocasionalmente encontrado, será alvo de dúvidas e de incertezas (verso 02 e 05).

Esse primeiro momento demarcado no futuro, portanto inexistente, tem um objeto de desejo: o rosto do eu-lírico (lembrando as faces às quais a poeta comumente chama em outros poemas). O rosto é a parte anterior da cabeça, mas também pode ser sinônimo para face, cara, fisionomia, presença, semblante. Por outro lado, o rosto mantém intensas relações com o imaginário. É um desvendamento incompleto e passageiro; nunca alguém conseguiu ver seu próprio rosto diretamente – para isso é necessário um subterfúgio que nos dê indiretamente sua imagem (espelho, água, etc, como sugere o mito de narciso), o rosto é também o íntimo parcialmente desnudado; é símbolo do divino no homem (divino esse que pode estar apagado, manifesto, perdido ou reencontrado), o rosto é símbolo de mistério, indicando a evolução do ser vivo das trevas à luz.

O rosto, que é reiterada vezes objeto de procura, encerra um mistério relativo ao eu-lírico. A gradação da futura busca envolve:

a) água, vidros e olhos alheios (versos 1-3) – tratam-se de elementos que por permitirem o reflexo estão associados ao mito de narciso; a água em suas variadas formas é o mitema pelo qual o mito é mais conhecido, pois sua superfície contempla, também, a precariedade e a evanescência dos indivíduos, assim como a sabedoria heraclitiana de que todas as coisas são mutáveis, portanto não-totalitárias. A busca do eu se dá pela exteriorização do eu – tema do duplo (eu e eu-outro); o eu-outro que no poema atende pelo significativo nome de ROSTO;

b) molde do rosto (versos 4-5) – Não se trata mais da água como elemento especular, mas sim das imagens não-visuais que o tato pode oferecer. Narciso, agora, prescinde de seu espelho mais imediato no qual o campo visual era fator determinante. Pelo tato, um molde dá conta da superfície e dos contornos do objeto, mas não de sua essência, sim de sua aparência. O recorte da busca ainda é dado pelo externo, porque se trata de reconhecer o objeto pela sua forma;

c) o movimento de busca, no verso 6, começa a interiorizar-se, porque o rosto pode estar dentro da terra, sinônimo de gruta, concha, etc, que como sabemos, tem relação com a idéia de mãe-terra, de interiorização intensa, de retorno a um estado primordial;

d) o verso seguinte propõe o equilíbrio entre as forças (internas – externas) do cosmo, porque a eqüidistância revela-se como ponderação e justiça, não cabendo escolhas porque estas sugerem desequilíbrio. O mito de narciso, aqui, já dá mostras de ter sofrido acréscimos em suas circunstâncias espaciais, não se limitando mais a uma região circunscrita à presença física do original e do decalque, isto é, à presença do objeto especular que irá devolver a imagem desejada;

e) versos 8/10 – há uma substancial mudança do sentido afirmativo para o interrogativo, indicando os pólos como paradigmas da oposição, isto é, o Homem situado nos limites possíveis do globo terrestre, negando, portanto, o equilíbrio pretendido anteriormente. Apenas nessa mudança da posição afirmativa do eu-lírico é que teremos a qualificação do objeto, que é feita por intermédio de construções oximóricas para dar significação do inusitado da vida[6];

            Já os versos 11 e 12 encerram o segundo momento do poema naquela tripartição temporal aludida acima. Este momento intermediário é capitaneado pelo presente do indicativo do mesmo verbo que compõe a anáfora, mas agora fazendo menção explícita ao eu-outro, isto é, o rosto. Como não há localização possível (versos 1 / 10), só resta ao eu-lírico dizer para que procura insistentemente seu próprio rosto. Revive, dessa forma, a angústia essencial do mito de narciso: o objeto vira sujeito e o sujeito vira o objeto. Trata-se, enfim, da visão especular, tão cara à Narciso no mito: no poema essa visão especular dá mostras de ser uma infindável busca, cujo fim reside no eterno procurar.

Por fim, o verso 13, fechando o poema, é trabalhado, na seqüência temporal, no pretérito perfeito. A pergunta exprime a intensa persecução do eu-lírico, cuja conclusão tem sido o descolamento do decalque em relação ao original. A palavra essência segue, justamente, nessa cadeia de significação: aquilo que constitui a natureza das coisas, ou como queriam os gregos, a “physis”. Neste caso específico, indefinível, não-encontrável, impossível de ser apreendido.

De todos modos, o poema encerra uma releitura do mito de narciso, agora não mais preocupado com sua beleza, com sua desmedida por ter-se recusado ao amor. A releitura de Cecília redimensiona o mito para uma concepção moderna, na qual a identidade não alcança uma unidade porque os espelhos, os mais diversos possíveis, não devolvem a imagem idealizada, estática e francamente reconhecível; há uma dissonância entre o original (no poema ela chama de essência – verso 13) e o decalque (no poema é o rosto). Essa dissonância é sua marca. Desse modo, a produção da imagem, visual ou tátil, será sempre marcada pela falta: duvidarei (verso 2), me encontrarei diferente (verso 5).

            O fim não é a morte, como no mito, mas um abrandamento da pena. A poeta é condenada à paixão do Eu. A presença do tema de narciso em sua poesia assim o demonstra. Angustiada pelas imagens de si que se mostram nas mais diversas formas da água, os reflexos lhe devolvem igualmente um intenso prazer na auto-contemplação. Esse círculo vicioso que se instaura pelas constantes revivências de narciso conduz, é certo, a um certo sentido ególatra que a impede de se afastar da apaixonante busca do eu – a auto-referencialidade do eu-lírico – marca inconfundível desses nossos longos anos de modernidade.



[1] Apresentado no Seminário Internacional de História da Literatura – PUCRS – outbubro de 2005.
[2] MEIRELES, Cecília. Dispersos. In.: Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 200. Todos os poemas citados neste trabalho são retirados desta edição e serão indicados apenas com o número da página.
[3] Cf. DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. Lisboa, Editorial Presença, s/d.
[4] cf. BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 1989. ____________.O ar e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 1988. ___________. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
[5] BURGOS, Jean. Pous une poetique de l’imaginaire. Paris. Seuil, 1982.
[6] O oxímoro é figura de linguagem barroca que servia, à época do descobrimento, para tentar dar conta do indizível, do inusitado, etc, que as expressões das línguas dos conquistadores não davam conta. Trata-se, em suma, de conjugar em uma mesma expressão os sentidos díspares de sintagmas de significação oposta: “mar de lama”, “rio de fogo”, etc.

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