segunda-feira, 3 de setembro de 2012

AUTOBIOGRAFIAS PODEM SER CONSIDERADAS LITERATURA?


[este ensaio foi escrito como conferência para o Simpósio Internacional Brasil 500 anos, na Unb, 2000, e publicado nos anais]


            O gênero autobiográfico ainda é alvo de restrições. Geralmente é reduzido à etiqueta de peça documental, fato que o restringe ao âmbito da historiografia e não ao da literatura. Ocorre que a crítica brasileira, na grande maioria das vezes, tem olvidado a essência das escritas autobiográficas, qual seja a formação de um discurso híbrido, que se realiza a partir de um espaço intervalar entre a historiografia e a ficcionalidade. A Literatura Brasileira, como instituição que propõe um cânone que a represente, não leva em consideração uma série de elementos constituidores do gênero autobiográfico e, sintomaticamente, exclui os textos sob a chancela da autobiografia. Entretanto, na contramão desse posicionamento restritivo, a própria Literatura se encarrega de fornecer respaldo para que repensemos as categorias de gêneros, tradicionalmente tidos como “literários” e  “não-literários”.

Na época da formação de nossa literatura nacional, isto é, sua consolidação a partir do Romantismo, alguns escritores começaram o exercício aparentemente despretensioso de narrar suas próprias vidas. O século XX já encontrou a nossa literatura forjada e é, justamente, na vigência da modernidade que o gênero autobiográfico alcança realizações exitosas. Meu ponto de partida será o aporte teórico que fundamenta as narrativas autobiográficas para,  em seguida, tratar da ascensão das mesmas no panorama da literatura brasileira contemporânea. Graciliano Ramos, Erico Veríssimo, Manuel Bandeira, Murilo Mendes e Carlos Drummond de Andrade são alguns dos nomes consagrados que praticaram esse tipo de escritura, consolidando-a no seu estrato literário. Na produção autobiográfica desses escritores encontraremos procedimentos altamente inventivos compatíveis com as suas chamadas produções ficcionais estrito senso. 

 

Os elementos da engrenagem autobiográfica


 

            Via de regra, autobiografia é uma narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando atribui importância a sua vida individual, em particular sobre a história de sua personalidade[1]. O narrador autobiográfico, por sua condição excepcional de contador de sua própria aventura, é uma figura que traz plasmada em si mesma a marca da dualidade. Dito de outra forma, na escrita autobiográfica pressupõe-se uma movimentação dialética do eu através da vivência do Complexo de Narciso. Assim, estão implicadas duas entidades que convivem tensionalmente na busca de uma unidade. Isso se dá na medida em que o autobiógrafo se debruça sobre sua imagem especular. O movimento narcisista pressupõe a duplicidade do ser, eu e eu-outro, ou eu-atual e eu-do-passado, personagem principal do universo diegético que compõe a obra e o narrador que está plantado no tempo do discurso.

            Há um discurso com fins similares aos do historiográfico, isto é, informar determinados acontecimentos do passado, e um outro cujos elementos de literariedade conferem marcas de ficção ao relato autobiográfico. Por outro lado, via de regra, a autobiografia distingue-se do romance pela obviedade dos objetivos de cada um: o autor, em ambos os casos, narra fatos e acontecimentos, mas pretende que sejam verídicos para o primeiro e ficcionais para o segundo.

Seguindo essa trilha, o caráter rigoroso da veracidade do relato entra em colapso quando se leva em consideração o eu como centro gerador dessas narrativas. Será comum que o autobiógrafo dote seu duplo, a personagem principal, com sinais próximos à perfeição, ou, no mais das vezes, propagandeie uma “verdade” que lhe atribuirá um caráter heroicizante e   apologético.

            Toda escrita autobiográfica implica algumas considerações que estão em relação direta com o sujeito emissor, isto é, com o sujeito que resolve narrar os episódios de sua vida. Não se pode inferir disso, é claro, que tudo o que compõe o texto autobiográfico corresponde à verdade objetiva dos fatos. Se, por um lado, ele busca a verdade, por outro, essa verdade é vista pela ótica pessoal e subjetiva do sujeito de quem parte o ato autobiográfico. Dessa forma, alguns fatos vivenciados no passado podem, e na maioria das vezes é o que ocorre, metamorfosear-se em produtos da fabulação, da ficcionalização. Há, assim, um jogo dialético, cujo resultado será fruto da tensão entre a realidade propriamente dita, substrato que fornecerá os “motivos”, e a ficção, o resultado literário desses “motivos”. 

Além disso, é preciso considerar um certo sentido de transcendência à morte. É notória a preferência da idade avançada como momento do ato autobiográfico. A escrita autobiográfica geralmente se constrói a partir da história de um eu assustado pelos signos anunciadores do fim, de tal sorte que esse eu parece repetir “eu não vou morrer!”.

           

A modéstia que não se disfarça


 

            Em 1873, José de Alencar, já consagrado como escritor no Brasil do II Império, escreve Como e por que sou romancista. Sua intenção declarada é dar seu depoimento acerca do surgimento de sua carreira literária e garantir-se na posteridade. A ênfase inicial do texto recai sobre o desvelamento do  aconchego da intimidade. Com uma certa falsa-modéstia, Alencar inicia: Na conversa que tivemos, há dias, exprimiu V. o desejo de colher, acerca de minha peregrinação literária, alguns pormenores dessa parte íntima de nossa existência, que geralmente fica à sombra, no regaço da família ou na reserva da amizade.[2]  

Afora algumas questões de ordem ideológica do Romantismo, é bastante perceptível na sua autobiografia a utilização de uma técnica narrativa já utilizada com êxito. Da mesma maneira que fez em Lucíola, o escritor simula a existência de um interlocutor silencioso e sedento de conhecer sua intimidade. Alencar transfere para um outro eu, carinhosamente chamado de “Meu amigo”, o  próprio desejo de se expor, de se deixar transformar em narciso.  Essa transferência irá regular o tom de seu discurso autobiográfico.

O tratamento que o narrador dá à sua imagem, isto é, o protagonista da diegese, é todo ele pontilhado pela aceitação, pela apologia, pelo sentimento narcisista de reconhecimento imediato. O tom grandiloqüente do texto propicia a que se vejam as marcas de um ego desejoso do reconhecimento alheio. Todo o primeiro capítulo está impregnado dessa substância narrativa. À guisa de explicação, o autobiógrafo chama sua autobiografia de autobiografia literária, e/ou o livro dos meus livros. São palavras do autor:

Se em alguma hora de pachorra, me dispusesse a refazer a cansada jornada dos quarenta e quatro anos, já completos, os curiosos de anedotas literárias saberiam, além de muitas outras coisas mínimas, como a inspiração do Guarani, por mim escrito aos 27 anos, caiu na imaginação da criança de nove, ao atravessar as matas e sertões do norte em jornada do Ceará à Bahia.[3]

 

Curioso notar que na autobiografia alencariana não há o transparente desvios de identidade e de tempo que marcam o processo da escrita autobiográfica. Eu-atual e eu-do-passado não se distanciam muito, vale dizer, a idealização com que o narrador descreve e narra os acontecimentos do passado acabam por conferir uma certa igualdade, digamos, de características com o protagonista. As datas mencionadas no decorrer do texto servem para demarcar a permanência e não o distanciamento. O lembrado está no texto não para incitar a “angustiosa busca do eu”, mas sim para reiterar os qualificativos com os quais o autobiógrafo se veste. O processo de “busca de verdades” pessoais é suplantado por uma incontida auto-apologia.

Através do  artifício da carta, por natureza o discurso da intimidade, Alencar propõe o seu relato autobiográfico, cuja mola propulsora passa a ser o desejo externo de um outro, sintomaticamente inominado. Tangenciando alguns fatos de sua infância e maturidade, Alencar dedica-se com mais afinco à propaganda de sua literatura. Dessa forma, o autobiógrafo parece estar mais interessado em explicar-se aos seus leitores do que efetivamente em ir a cata de si mesmo. De toda sorte, trata-se de uma narrativa explicitamente autobiográfica, cujo foco de atenção não é o eu-do-passado, mas sim o escritor em face de suas explicações e justificativas para a construção de sua obra literária.

Apesar desses argumentos rapidamente expostos, vale acrescentar que com ele a autobiografia no Brasil começa a engatinhar. Naturalmente muitos textos referentes aos séculos anteriores ainda estão por emergir no panorama da Literatura Brasileira. De toda sorte, cumpre observar que muita produção dita íntima, como diários e cartas, está ainda restrita ao ambiente da historiografia.

As escritas autobiográficas ainda eram planejadas como textos fora do panorama da Literatura. Como produção restrita ao círculo da intimidade, eram quase destituídas de problematizações que a Literatura Brasileira já apresentava. Além de Alencar, é preciso lembrar de Minha formação, de Joaquim Nabuco, o qual, indo na esteira do romancista, também escreve para fazer um auto-elogio sem deixar-se perpassar por questões mais complexas na urdidura de sua autobiografia.

Contudo o século XX, marcado por intensos questionamentos e por sucessivas implosões de “verdades” e sistemas das mais variadas ordens e facções, irá exigir o trânsito complexo entre a realidade propriamente dita e a ficção como fulcro das autobiografias. Os paradigmas serão desenclausurados e abrigarão as inúmeras transgressões possíveis. As rupturas no gênero autobiográfico se estenderão de mecanismos estruturais simples às esferas temáticas conturbadas. O que reza, no século XX, é a intensa busca do inusitado. Nesse contexto, as autobiografias servem como possibilidades para as grandes desconstruções do sistema literário vinculado à Tradição.

Muitos escritores se dedicaram ao “novo” gênero e o fizeram com a mesma competência dada à produção ficcional estrito senso. A partir da bem-comportada e “impessoal” autobiografia de Alencar, os autobiógrafos do século XX deixaram as marcas indiscutíveis do desejo da transgredir normas já gastas as quais não mais respondiam por suas necessidades literárias.

 

O autobiógrafo partido

 

            Toda escrita autobiográfica almeja a reconstrução da imagem do eu. Entretanto, ela só será reconstruída a partir de um sistema comparativo que permita a identificação do eu com o eu-especular. A noção do outro, isto é, o sentido de alteridade, ou, segundo Octávio Paz, a outridade é condição essencial para que esta empresa seja levada a cabo.

            O jogo com o duplo é geralmente entendido a partir das personagens, isto é, o desdobramento de uma personagem em outra personagem, nas quais surge um embate, no mais das vezes de caráter moral, entre o original e o decalque (a personagem e seu duplo).

            Entretanto, a tematização do duplo não está presente apenas nos desdobramentos das personagens. Há, igualmente, duas outras instâncias. Uma delas consiste nas relações de discurso e de proposta à revelação de uma verdade individual. É lícito considerar que o gênero autobiográfico também se apresenta como o duplo das narrativas ficcionais estrito senso. Por ser o outro da ficção, as narrativas autobiográficas propõem uma leitura diferenciada. Nela, a ilusão de realidade é maior do que aquela normalmente encontrada em textos da instância ficcional.

            Essa relação pode ser verificada também em autores que se destacam por inserir elementos autobiográficos em seus textos ficcionais. Um exemplo reconhecido pode ser dado através do nome do escritor Graciliano Ramos. Com exclusão, talvez, de Vidas secas (1938),  sua obra de ficção compõe-se a partir de porções autobiográficas sem, contudo, ser considerada autobiografia. Exceção feita, naturalmente, aos seus livros: Infância (1945) e Memórias do cárcere (1953), autobiografias declaradas[4].

            A outra instância a respeito da tematização do duplo nas narrativas autobiográficas refere-se à cisão do autobiógrafo em duas funções que, a rigor, complementam-se ao final do relato. Refiro-me ao narrador e seu desdobramento enquanto personagem principal do universo diegético, ou eu-atual e eu-do-passado. Este viés do duplo  é vivenciado na incidência do mito de Narciso, elemento propulsor do ato autobiográfico.

            O narrador autodiegético das autobiografias compõe-se a partir de uma estrutura seccionada que o biparte. Esse ato suscitará a estranheza com que se depara com sua descontinuidade. Essa estranheza é o ato gerador do discurso autobiográfico. Assim, a escrita autobiográfica é marcada pela intensa exteriorização do sujeito na sua mais profunda interioridade, já que ele é o próprio objeto sobre o qual debruçará seu olhar persecutório a respeito da vida.

            Tecnicamente, essa fragmentação do sujeito verifica-se no extrato temporal do texto. Normalmente, a presentificação do passado, na malha textual,  faz-se pela marcação dos verbos declinados no pretérito, que, dentro do contexto da narrativa, são trazidos ao tempo da escrita.  O narrador (o eu-atual), instalado no presente, revive-se na personagem principal (o eu do passado) que está plasmado na vida que já se foi. Este desvio de identidade observável no ato autobiográfico só poderá ser resgatado a partir da escrita.

            Pedro Nava, no quinto volume de suas memórias, Galo das trevas - As doze velas imperfeitas (1981), abandona a tradicional posição do narrador autodiegético das autobiografias, para instituir um narrador aparentemente impessoal, a quem cabem as obrigações do ato narrativo. Ocorre que o autor, por motivos de pudor[5], cria uma espécie de alterego em suas memórias, sintomaticamente chamado de “Egon”, e que funciona como a concretização desta dualidade do sujeito no ato autobiográfico.

            A escrita autobiográfica propõe o confronto do eu com seu próprio limite, ou seja, o eu-outro. O sujeito demarca-se resgatando um passado que, se o busca, perturba-o. Essa busca de alteridade, que o escritor/Narciso intenta pela escrita, sugere formas reflexivas, como devorar-se a si mesmo, penetrar em si mesmo, ver a si mesmo, conhecer-se a si mesmo. Da mera imagem especular apreendem-se os contornos exteriores.

            A fenda que se abre no autobiógrafo, cindindo-o em duas personagens marcadas pelo desvio de tempo, concretizado no ato narrativo e no tempo diegético, faz com que o leitor experimente uma certa fluidez temporal que começa num passado distante e, geralmente, desemboca no passado recente, momento que coincide com o final da escrita autobiográfica. A semelhança com a lenda de Narciso não é mera coincidência. O paradigma narcísico divide-se em imagem original e imagem especular; a primeira procura na segunda os reflexos que julga possuir e a busca faz-se  através de um debruçar-se sobre o fluxo da água que funciona como espelho. O decalque apenas reflete aquilo que lhe dá forma.

            O autobiógrafo, associado à figura de Narciso, debruça-se sobre os conteúdos do passado, isto é, sua história pessoal,  para nela ver sua imagem refletida. O que encontra é o resultado de uma combinação de dados que refletem uma imagem, a do personagem, cujas distorções em relação à original, a do narrador, propulsionam esta intensa e apaixonante busca para saber e compreender os motivos que ocasionaram a transformação daquele, a personagem, neste que é, hoje, o narrador.

 

As recordações da infância

 

            Toda escrita autobiográfica vem marcada por uma espécie de discurso preambular, cujo fim consiste em descobrir o elemento original que deu início à existência do sujeito. Por mais simples que possa parecer à primeira vista, a “narrativa do nascimento” complexifica-se na medida em que ela é produzida através dos conteúdos do âmbito do esquecimento. Essa situação peculiar dá início à tensão entre a fabulação e a realidade concreta. A nossa origem que se perde na noite da amnésia só poderá ser resgatada através das narrativas dos outros membros da família, ou daquilo que Freud chama de romance familiar. Essa parte é o material sobre o qual assentarão as primeiras lembranças de vida, ou, na melhor das hipóteses, a origem da consciência.

            É sintomático, portanto, que muitos textos autobiográficos iniciem por estas particularidades. Oswald de Andrade exprime perfeitamente o dilema do “início”: Como e por onde começar minhas memórias? Hesito. Devo começá-las pelo início de minha existência? Ou pelo fim, pelo atual (...) Pois se é preciso começar, comecemos pelo começo. A mais longínqua lembrança que tenho de vida pessoal (...)[6]. Já Graciliano Ramos parte do princípio de que a narrativa do nascimento concretiza-se em função das primeiras lembranças. Infância, seu livro de estréia no gênero autobiográfico, inicia pela declaração da consciência:

A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de louça vidrada, cheio de pitombas, escondido atrás de uma porta (...) Talvez nem me recorde bem do vaso: é possível que a imagem, brilhante e esguia, permaneça por eu ter comunicado a pessoas que a confirmaram (...) De qualquer modo a aparição deve ter sido real.[7]

 

            Não à toa, o escritor alagoano inicia suas memórias por um livro sintomaticamente intitulado Infância. Trata-se da recapitulação de sua vida a partir de uma narrativa do nascimento que abarca todo o volume, ao mesmo tempo em que instaura, desde o início, um embate ontológico que se formula através da tensão entre a realidade e a ficção.

            O relato episódico da origem pode estender-se indefinidamente. Qual é o elemento restritivo da formação do sujeito? Não existe um critério exato e imutável para o conceito de nascimento, mesmo porque a imagem que se faz a respeito deste termo tem sofrido evoluções e alargamentos no seu campo de significação. Nascimento implica nascer para a vida e, portanto, relaciona-se à formação da personalidade do sujeito.

            Há uma série de quatorze temas convencionais que se inserem, de uma maneira ou de outra, no relato episódico da narrativa do nascimento. São eles: nascimento (situações referentes às condições do parto, as quais normalmente são reproduzidas pelo autobiógrafo a partir de relatos dos familiares), os pais, a casa, a família (tios, avós, primos, etc.), a primeira lembrança, a linguagem, o mundo exterior, os animais, a morte, os livros, a vocação, a escola, o sexo e o fim da infância. A inclusão de tais temas como motivos desencadeadores para a construção da autobiografia assegura, em princípio, credibilidade à história do autor.

                       

O dilema da morte

 

            O discurso autobiográfico, com exceção do diário,  ganha corpo a partir de um sentido dialético, que impulsiona o ato autobiográfico. Se, de um lado, está a “revivência” da vida, isto é, se o autobiógrafo escreve para viver novamente, independente de suas intenções apologéticas, ou para remissão de seus erros, de outro, ele o faz premido pela perspectiva da morte.

            As autobiografias são levadas a cabo, na grande maioria das vezes, na terceira idade, portanto, teoricamente, próximas da morte. Oswald de Andrade resolve escrever suas confissões com sessenta e dois anos de idade. É a sabedoria resultante dos longos anos vividos que dão fundamento ao processo auto-inquisitório. As marcas do corpo já desgastado pelas doenças igualmente o impulsionam para este tipo de escrita, que, infelizmente, é interrompida pela morte do poeta vanguardista. Registra em Um homem sem profissão:

Devo começá-las pelo incício de minha existência? Ou pelo fim, pelo atual, quando, em 1952, os pés inchados me impossibilitam de andar no pequeno apartamento que habitamos em São Paulo (...) Estou atacado de uma asma cardíaca, produzida por insuficiência, e o dr. Emílio Mattar procura me tirar do caixão, com injeções de Cardiovitol que o farmacêutico da vizinhança, seu Nenê, vem aplicar todas as noites, na veia.[8]

 

            Pedro Nava inicia sua produção com sessenta e cinco anos. Baú dos ossos e os demais volumes de suas memórias são levados a lume quando o médico entra no declínio profissional trazido pela idade. Numa entrevista de 1983, Pedro Nava esclarece o motivo desencadeador de suas “ruminações” delegando o crédito à velhice:

Com o envelhecimento vamos nos fechando um pouco, cada um dentro de si, dentro de seu grupo familiar, de modo que eu me fechei com minha mulher (...) Este intimismo em que nós começamos a viver, a pessoa muito fechada dentro de si mesma, leva à recordação, à rememorização, a remoer, a uma ruminação da vida. Depois disto, a sensação de escrever vem certamente de guardar[9]

 

 

As garantias de um jogo


 

            Verdade ou mentira? Esta é uma das questões que aflige diretamente a credibilidade que o rótulo autobiografia preconiza. Para muitos, a realidade e a ficção são os dois elementos que se degladiam em um par antitético. O ato de fingir compõe-se da importação da realidade vivencial para dentro do texto, repetindo-a a tal ponto que acaba por atribuir ao imaginário a qualidade do real, sem sê-lo[10].         

            Dessa forma, a realidade que aparece no texto literário é uma alusão a algo que ela representa, mas não é. O gênero autobiográfico, por seu turno, propõe dissumulações para as marcas da ficcionalidade. As autobiografias, na perspectiva de contar a verdade dos fatos vivenciados por um ser real além do ser-de-papel (o narrador), formulam-se em uma noção generalizada e ingênua de que reproduzem a verdade estrita dos acontecimentos.

            As produções autobiográficas são caracterizadas pela tentativa de supressão do implícito como se, expressão esta que governa e determina a qualificação explícita do ficcional nos textos literários. A realidade dada é percebida como ilusão de realidade.

            De outra parte, o ato de fingir, nestes casos, não consiste em demiurgicamente formular um mundo imaginário e povoá-lo com seres como se fosse o mundo real. No gênero autobiográfico, a verossimilhança guarda relações íntimas com a realidade vivenciada pelo autobiógrafo e dela não pode, sob pena de fracassar a intenção de contar uma verdade, afastar-se ou olvidá-la. A supressão do como se é iniciada a partir do pacto de leitura que o autobiógrafo de antemão propõe ao seu leitor. Ao estabelecer uma tripla identidade, isto é, coincidência radical entre autor, narrador e protagonista, a narrativa autobiográfica induz a uma leitura que acarreta a crença de se estar lendo os episódios e tudo o mais que significa a vida real de uma pessoa.

A autobiografia cria a ilusão de que estes condicionantes são possíveis. Esta ilusão contratual faz com que o autobiógrafo incite o leitor a entrar em seu jogo, dando a impressão de um acordo aceito e assinado por ambas as partes. De uma forma bastante simples, muitos textos autobiográficos iniciam com a explicitação desta proposta. Previne  Erico Veríssimo na parte preambular de Solo de Clarineta (1976):

Não esperem que estas memórias formem um documento histórico. Elas não têm a intenção de fazer nenhum perfil de minha época ou dos meus contemporâneos. São apenas uma história particular - uma história em tom de quase romance, mas que vai contada com a maior franqueza. É um livro sincero, que dedico especialmente àqueles que me têm lido durante todos esses anos.[11]

 

O escritor gaúcho propõe que a sua obra, recém publicada, seja lida como um produto de suas reminiscências pessoais: uma história particular. Mas, independentemente do caráter verídico pretendido para os fatos narrados, o autor adverte que seu texto foi construído com recursos do discurso ficcional (em tom de quase romance). Mesmo assim, trata-se de um livro sincero. A certeza do pacto autobiográfico em uma determinada obra, então, será dada em função de alguns elementos que dialeticamente são apresentados ao leitor. A primeira leitura do texto, com todas as indicações preambulares, prenuncia o pacto autobiográfico, mas é somente através da confirmação do paratexto que ele irá se delinear com maior clareza. Nele, isto é, no paratexto, a intenção do sujeito autobiográfico deve estar explicitamente colocada. Retomando Erico Veríssimo, o pacto autobiográfico é prenunciado no paratexto. Na segunda orelha do livro encontra-se o seguinte fragmento:

Um homem com a personalidade amável de Erico Veríssimo tinha de resistir às exigências desse gênero, as memórias. (...) Este livro (saibam todos e saiba o autor) não podia deixar de ser escrito: ao atingir o alto grau de escritor do povo, de certa forma o romancista contraiu a dívida de suas revelações[12].

 

            O leitor, já em seu primeiro contato com Solo de clarineta desconfia de que se trata de um livro cujos eventos narrados fazem parte da vida do escritor. Estará presente, portanto, um discurso referencial que terá o encargo de traduzir, em discurso literário, a vida pessoal do homem Erico Veríssimo.

            Por outro lado, este contrato de leitura, proposto pelo paratexto, será melhor delineado a partir da malha textual propriamente dita. O primeiro capítulo, Álbum de família, como o próprio título indica um resgate genealógico, dá conta de estabelecer a identidade entre o narrador autodiegético, instituído como tal a partir da declinação em primeira pessoa do singular (Senti um dia a curiosidade ...), a personagem principal, isto é, a pessoa que (re)vivencia os eventos, e o autor, cujo nome está estampado no frontispício do livro. Eis um pequeno fragmento: Cruz Alta foi o ponto de encontro dos dois troncos cujos ramos se uniram e, numa sucessão de enxertos e cruzas, tornaram possível o desabrochar desse espécime humano que agora me contempla, irreverente, do fundo do espelho.[13]

 

O anjo mais torto no seio da mudança

 

            O gênero autobiográfico é, por natureza de sua matéria, uma narrativa em prosa. Na contramão desse conceito dogmático está o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade. Inaugurando, no Brasil, a transgressão à forma tradicional do gênero, o poeta publica, sucessivamente Boitempo (1968), Boitempo (o menino antigo) (1973) e Boitempo (esquecer para lembrar) (1979), três volumes independentes de poesia.

Subvertendo deliberadamente as modernas teorias a respeito do gênero lírico, as quais entendem o discurso poético como ficção, Drummond rompe com o paradigma ao instituir o discurso lírico com teor narrativo. Na série autobiográfica, o poeta cinge-se em eu-atual, o sujeito lírico dono da enunciação poética, e em eu-do-passado, o ator principal do enunciado, o qual, na grande maioria dos exemplos, é nomeado de menino. Esse desvio de identidade acrescido de outros elementos fazem com que o autor proponha um direcionamento na leitura, incitando-nos ao jogo autobiográfico.

            A questão problematiza-se um pouco, na medida em que Boitempo não apresenta uma forma narrativa explicitada na malha textual, pois trata-se de uma composição poemática, cujas peças podem ser lidas separadamente. Isto é, são poemas autônomos, mas subseqüentes, que perfazem sua autobiografia. A idéia é, justamente, desarticular os limites da escrita autobiográfica: invadindo a forma lírica, mas permanecendo no âmbito do narrativo. A opção pelo lírico como forma apropriada para o desenvolvimento da palavra autobiográfica se insere no contexto de rupturas que marcam todos os campos humanos na vigência do século XX. A nós interessa ressaltar, no campo da Teoria Literária, o imenso alargamento dos limites formais impostos aos gêneros literários, e aqui, especificamente, no que diz respeito ao gênero autobiográfico.

 

O que não finda


 

            Resta afirmar o que todos já sabemos. A Instituição Literária no Brasil tem sofrido imensas transformações por acréscimos e algumas subtrações. Estão aí para comprovar esse movimento ininterrupto de imersão das literaturas emergentes, tais como as de expressão feminina, a dos negros, a dos gays, etc. O gênero autobiográfico ainda está necessitado de um olhar mais cauteloso e menos desconfiado. Trata-se, entre nós, de um tipo de discurso literário ainda pouco avalizado e, portanto, desconhecido.

Os exemplos aqui utilizados são apenas uma pequena amostra do que as autobiografias têm feito no país. Naturalmente muitos nomes significativos foram deixados de lado, especialmente os chamados contemporâneos. Faço menção àqueles escritores que, marcados pelo último Regime Ditatorial, sentiram necessidade de registrar suas experiências, por motivos óbvios. 

Nessa época de intensos desmantelamentos e processos de rupturas com a Tradição, o gênero autobiográfico está ainda em busca de sua(s) identidade(s). Identidades que, transferidas para o plano diegético, deixam transparecer a relação intrínseca entre a identidade individual e a identidade de grupo. Em todos os casos, a unidade cedeu lugar ao plural. Quer dizer, o gênero autobiográfico, por natureza híbrido, obriga a reflexão do paradoxo identitário brasileiro. Nós somos oximóricos não apenas em nossas manifestações lingüísticas e culturais. Ao contar-nos, acabamos por desvendar nossa pluralidade étnica, nossas ambivalências pessoais, as faces que nos dão formas. Assim, as autobiografias deixam ver que a essência do brasileiro é, por natureza, plural, porquanto a escrita autobiográfica é, ela mesma, plural.

 

 



[1] LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique. Paris: Euil, 1975. P.14.
[2] CF. ALENCAR, José de. Como e por que sou romancista. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998.p. 13.
[3] Op. cit. P.15.
[4] Cf CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
[5]Conforme entrevista de Nava à professora Maria Aparecida Santilli, publicada em Literatura comentada - Pedro Nava. São Paulo: Abril, 1983, na qual ele declara: Essa transposição de pessoas é pelo seguinte (curioso, eu verifiquei depois), é um fenômeno psicológico do qual quero falar também. Muito interessante. O Egon, naturalmente, é minha pessoa. Eu passei a contar como se fosse terceira pessoa, porque me transformei em simples narrador. (...) Quase todo mundo diz “Égon”,mas para mim vale pelo “ego”. Pus “Ego” e acrescentei un “n” para dar certa eufonia, para dar um som mais bonito ao nome que verifiquei, depois, que existe (...) Continuo sendo eu mesmo, eu estou ali dentro. (p.14:15)
[6] ANDRADE, Oswald. Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe. São Paulo: Globo/Secretaria do Estado de Cultura, 1990.
[7]RAMOS, Graciliano. Infância. São Paulo: Martins, 1969. p.23.
[8]ANDRADE, Oswald. Op. cit. p.20.
[9]cf. Literatura Comentada - Pedro Nava São Paulo: Abril, 1983.
[10] ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa (Org.). Teoria da Literatura em suas fontes vol II. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983.
[11]VERÍSSIMO, Erico. Solo de clarineta. Porto Alegre: Globo, 1976 (vol I).
[12]VERÍSSIMO, Erico. Op. cit.
[13]Ibidem, p.1

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