quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

O espaço redimensionado em 'o búfalo' de clarice lispector


[este ensaio foi publicado na série Estudos Literários, pela Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, campus Araraquara, volume organizado pelos profs. Dra. Ana Luiza Camarani e Dr. Luiz Gonzaga Marchezan, pela Cultura Acadêmica Editora, em 2012]
O espaço redimensionado em O búfalo de Clarice Lispector

 Profa. Dra. Raquel Souza[1]

            A fortuna crítica de Clarice Lispector é, sem dúvida, uma das maiores da Literatura Brasileira. Sua obra tem sido alvo de inúmeros críticos, desde aqueles de formação filosófica aos de psicanálise. É, portanto, muito árdua a tarefa de escrever sobre sua produção sem incorrer em repetições, conceitos já mastigados ao excesso, cair no lugar comum dos estereótipos do feminino, da literatura hermética, do existencialismo, etc. E, no entanto, sua obra sempre apresenta figurações inusitadas, revelações surpreendentes. Enfim, a cada leitura que faço se renovam as expectativas, redescubro novas nuanças, inusitados aspectos antes não percebidos. Surpreende com imagens absolutamente cotidianas, singelas, fortes. Suas personagens carregam as consciências perdidas por aí, espalhadas no mundo. Como desviar-nos do susto quando um conto finaliza repentinamente? E a gente se pergunta, entre a credulidade e a racionalidade científica: - mas quem era aquela galinha que virou almoço de domingo?[2]

Fico em estado de perplexidade quando a leio. Quero, então, declarar de início que minha intenção com este ensaio é usufruir do aprendizado que a leitura dela me propicia, isto é, aliar a ação intelectiva, que comanda a organização de seus textos, aos sentimentos que ela desperta em mim. Incluo nesse percurso as etapas epifânicas de que falou Affonso Romano em estudo já clássico, mas, sobretudo, as idéias de “revelação” como ensinou Octávio Paz sobre a poesia. Serão meus companheiros teóricos para este desvendamento hermenêutico as questões trabalhadas pela Filosofia do Imaginário. Minha vontade é retomar aquela função da literatura há muito esquecida pela academia – o prazer do texto (como o chamou Barthes) e, através dele, do prazer, “apreender” a vida. Reitero: quero apenas deixar que o conto de Clarice Lispector se expanda em mim nas suas significações, assim como propõe Gaston Bachelard – ressonância e repercussão. Na parte introdutória de A poética do espaço, o filósofo comenta sobre a posição do leitor de poesia. Explicando o par “ressonância-repercussão”, esclarece que as ressonâncias se dispersam em diferentes planos na vida do leitor, e que as repercussões nos incitam a um aprofundamento da nossa própria existência. Ele argumenta:

Na ressonância ouvimos o poema; na repercussão o falamos, ele é nosso. (...) É depois da repercussão que podemos experimentar ressonâncias, repercussões sentimentais, recordações do nosso passado. Mas a imagem atingiu as profundezas antes de emocionar a superfície. E isso é verdade numa simples experiência de leitura. Essa imagem que a leitura do poema nos oferece torna-se realmente nossa. Enraíza-se em nós mesmos (BACHELARD; 1993:07).

            Apesar da imensa e não menos importante fortuna crítica sobre a obra de Clarice Lispector, gostaria de mencionar igualmente como “fonte de inspiração” para minha leitura e minhas observações o interessante livro de Regina Pontieri, Clarice Lispector – uma poética do olhar, fruto de sua tese de doutoramento. A leitura de sua leitura desvendou-me o óbvio que eu não estava considerando para “explicar” meus espantos diante do conto “O búfalo”, de Laços de família[3], texto ao qual quero me dedicar porque temos nos perseguido (o conto e eu) mutuamente ao longo de alguns anos.

            Para iniciar meu percurso exegético, preciso organizar minhas idéias para delas não me perder. Tendo o conto como meu centro de atenção, pretendo desenvolver questões relativas a três aspectos que se cruzam sem que se lhes perceba nitidamente  seus limites, para, enfim, conjugá-los numa quarta operação. Salta aos olhos a estruturação sintática, melhor dizendo, a organização de acontecimentos comandados pela conjunção coordenativa adversativa “mas”; na seqüência do ensaio, o verbo olhar, que precede cada animal visitado e seus elementos simbólicos revelam considerações necessárias, pois é através delas que, para a terceira parte do meu intento, se coloca o formato de bestiário, cuja idéia central é o aprendizado de algo. Dessa forma, desejo alcançar a coerência interna da obra, isto é, seus princípios norteadores sem os quais o final do texto não se abriria a uma epifania, e tal acontece porque a autora reatualiza o mito do labirinto – um espaço redimensionado.

            Dessa forma, o espaço se transforma em um plano diferente não mencionado. De mera categoria narrativa, sobre a qual pesam alguns conceitos estritos, o espaço em Clarice logra um patamar explicativo que vai além das simples coordenadas da Física – espaço X tempo. O sentido mítico do “espaço sagrado”, usualmente conjugado com “tempo sagrado”, sobrepaira a narrativa. E só se desvela quando a ascese da protagonista se completa.

            A partir de agora, como leitora, tomo o conto como espaço também para a minha peregrinação particular. Quero percorrer as etapas de compreensão, como se fossem (e são!) patamares significativos que conduzem ao centro da narrativa.

 MAS ERA PRIMAVERA – a fôrma desenformada

            Em Clarice, todo aprendizado se incorpora à linguagem, qualquer que seja o texto. Em “O búfalo”, toda simbólica, ela, a linguagem, é governada pela conjunção adversativa “mas”, cujo significado consiste em contrapor uma coisa à outra. Como se fosse uma anáfora, está impressa vinte e três vezes. Tanta insistência no “mas” certamente indicia que se trata de algo importante, e não apenas um recurso retórico para garantir certa oralidade ao conto. Claro, a conjunção colocada em início de período confere à escrita o tom da oralidade típica de Clarice, quer dizer, o leitor como que acompanha o pensamento da narradora que, por sua vez, “reproduz” o também pensamento da protagonista. Os exemplos são vários. Tomemos um:

Andou pelo Jardim Zoológico entre mães e crianças. Mas o elefante suportava o próprio peso. Aquele elefante inteiro a quem fora dado com uma simples pata esmagar. Mas que não esmagava Aquela potência que no entanto se deixaria docilmente conduzir a um circo, elefante de crianças. E os olhos, numa bondade de velho, presos dentro da grande carne herdada. O elefante oriental. Também a primavera oriental, e tudo nascendo, tudo escorrendo pelo riacho. (p.151).

Em Mas o elefante suportava o próprio peso não se coloca efetivamente em posição adversa da frase que a antecede (Andou pelo Jardim Zoológico entre mães e crianças); a conjunção, parece-me, tem outra função, esta sim, a de sinalizar ao leitor um pensamento, ou melhor, uma linguagem constituída a partir da lógica inerente à oralidade. Entretanto, trata-se da oralidade da narradora e não da protagonista. Nada mais “clariceano” do que uma escrita nestes moldes! Assim como ela subverte a apreensão da aparência como realidade, a sua escritura igualmente subverte a lógica gramatical trazendo para o texto outra sintaxe oralizada. No caso da conjunção coordenativa adversativa, que exigiria uma oração antecedente assindética coordenada, esta se faz presente apenas por uma opaca referência aos sentimentos da protagonista. Esta referência, gostaria de ressaltar, se dá na medida em que o leitor vai lendo a história da mulher e começa a sentir com ela a inquietude do sentimento estranho que procura.  Assim, andar pelo zoológico entre mães e crianças não tem uma vinculação adversa ao fato do elefante ser um animal grande e pesado. Não há uma relação de adversidade entre essas duas informações: andar pelo zoológico MAS o elefante suporta seu peso.

Então, só para reiterar meu argumento inicial sobre esta questão, a conjunção “mas” tem como uma de suas responsabilidades significativas a de marcar uma determinada oralidade da narradora. Por outro lado, é preciso olhar com mais cautela! O apelo deste “mas” é muito grande para que eu me dê por satisfeita apenas com a explicação acima exposta. Creio que há mais a ser observado.

O que significa, efetivamente, a adversativa, o adverso? “Contrário, oposto, desfavorável”, é o que responde o dicionário. Então, a história se constrói a partir de um sistema interessante de oposição, oposições entre os animais arrolados e uma busca sentimental da protagonista, cujos desejos são narrados por um narrador heterodiegético.

 Curioso reparar que, depois de inúmeras vezes lido, o conto gentilmente me oferta uma observação: Mas era primavera. É a primeira frase do narrador, frase curta, seca e objetiva, e que, no entanto, traça um sistema de oposição entre alguma coisa e a estação do ano, a primavera. Certamente é conhecida a relação da primavera com a renovação da vida. E este parece ser o ambiente através do qual a protagonista trafega. O percurso da aprendizagem é longo e requer paciência, da protagonista e do leitor.

            A caminhada pelo zoológico também é muito significativa. A categoria narrativa “Espaço” se materializa em um espaço propriamente dito, a princípio, pueril e singelo. O Jardim Zoológico é um espaço privado que busca uma espécie de recomposição do ambiente natural da vida selvagem. Os habitantes são, na grande maioria, animais exóticos ao lugar espacial onde se localiza o conjunto de prédios. Enjaulados, os espécimes servem como amostragem da fauna. Como são representantes da vida silvestre, devem guardar características selvagens. A selvageria, neste caso, deve estar atrelada à idéia de oposição ao domesticado, lugar de origem dos visitantes.  Não sei se exagero, mas aí começa a expansão da idéia adversativa que comanda a composição do conto. É selvagem, mas há o domesticado; são animais, mas há o humano; são instintivos, mas há a racionalização; são furiosos, mas há também o amor. É para este lugar que a mulher vem buscar o conhecimento de alguma coisa que lhe é ausente. Ela ama mas quer aprender a odiar; ela é civilizada mas quer aprender a ser selvagem; ela vive mas quer aprender a morrer.

Creio que se trata do “coração selvagem” que a autora já procurava em seus romances iniciais. No zoológico, através de imagens que se justapõem de forma opositiva, o livre é preso pelas grades de aço que prendem os animais. Estes sim são livres, enquanto a protagonista passeia em uma jaula invisível que o leitor percebe mas não vê. O adverso, inerente à conjunção “mas” que introduz o conto e cada uma de suas partes-aprendizagem, funciona aqui como fundamento para a apreensão do universo diegético. As conjunções adversativas são coordenativas, o que quer dizer que as partes constitutivas do período gramatical são equivalentes, iguais, coordenadas; e não subordinadas umas às outras. Esta é a relação entre as partes que compõem o texto. Início e fim, bestas e humano, amor e ódio, vida e morte. Estão no mesmo plano, na mesma altura, porém em lados opostos. Esse mecanismo irá determinar todas as ações e principalmente os sentimentos da personagem. Ou seja, a forma acompanha e explica o conteúdo.

 

ABRIU OS OLHOS DEVAGAR – o caminho a ser percorrido

            Como alcançar a explicação exata sobre o olhar em Clarice? É certo que tudo se dá no espaço do zoológico, quer dizer, nas dependências do zoológico. Entretanto, este espaço ainda é externo à protagonista, quase indiferente. À medida que minha leitura busca se adensar, percebo que a interiorização do espaço passa, necessariamente pela visão da mulher, por seu olho que se torna, ele mesmo, lugar onde tudo pode ser reconhecido – uma outra modalidade de espaço.

No conto “O búfalo” a narradora insiste no verbo olhar e seus correlatos. Naturalmente a morte, ou o que quer que seja que a protagonista busque no zoológico, será alcançada pela mediação do olhar. A mulher olha e é olhada pelos animais enjaulados. A primeira aparição do “olhar” ocorre, de forma propositada, pelo casal de leões, animais conhecidos pela maneira sanguinária com que tratam suas vítimas; é com eles que a mulher inicia seu percurso, a o mesmo tempo em que é por eles que ela desvia o olhar: A mulher desviou os olhos da jaula, onde só o cheiro quente lembrava a carnificina que ela viera buscar no Jardim Zoológico (p.149). Em estudo instigante, Marilena Chauí (1988:33) afirma o seguinte:

            Porque cremos que a visão se faz em nós pelo fora e, simultaneamente, se faz de nós para fora, olhar é, ao mesmo tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro de si. Porque estamos certos de que a visão depende de nós e se origina em nossos olhos, expondo nosso interior ao exterior (...).

            Esta parece ser a situação nuclear de toda a ação do olhar em “O búfalo”. Todo o resto, ou melhor dizendo, todas as nuances do olhar da mulher decorrem desta constatação. O olho olha e é invadido pela imagem externa; no ato seguinte ao olhar e à invasão do mundo, as percepções individuais sobre as imagens chegam pela retina. Trata-se, enfim, de uma ação que comporta dois momentos distintos, porém imbricados.

Partindo desta observação curta, mas não menos importante, anoto que o percurso do olhar se inicia neste primeiro episódio. É muito significativo, porque traz, de antemão, a idéia fundamental sobre o olhar: introjeção do externo, isto é, o mundo em imagens inunda o “imo” do dono dos olhos que olha. O amor entre os leões invade o espaço interno da mulher e a inunda daquilo que ela viera se livrar.  Assim ocorre em todos os episódios, com exceção, naturalmente, do último. Ao olhar os animais enjaulados, ela traz para si o “universo” imediato destes animais. Dessa forma, ela não suporta o amor entre o casal de leões, a ingenuidade da girafa, a humildade do hipopótamo. Estes três primeiros animais sequer a olham, de maneira que eles não funcionam como elementos especulares capazes de absorver o mundo interno da protagonista. Ela, a mulher, não sai de si porque não há recepção. Ela olha, mas o mundo não a olha na contrapartida.

            No conto de Clarice, a troca de posições, ou melhor, a mudança de sujeito em objeto e vice-e-versa, ocorre com tamanha força que quase não a percebemos. A mulher olha os macacos dentro da jaula e os observa como se buscasse sua alteridade. Ela os olha intensamente, até o instante em que, finalmente, o olhar lhe é devolvido:

            Um macaco também a olhou segurando as grades (...) era entre aqueles olhos que a olhavam sem pestanejar. De repente a mulher desviou o rosto: é que os olhos do macaco tinham um véu branco gelatinoso cobrindo a pupila, nos olhos a doçura da doença, era um macaco velho – a mulher desviou o rosto, trancando entre os dentes um sentimento que ela não viera buscar (...). (pp. 150:151)

            A mulher olha para buscar no exterior aquilo que lhe falta por dentro. A visão devolveria, assim, o ódio para aliviar suas dores. Introjetar, pelo olhos, uma realidade que desconhece – fazendo-se o conhecimento de fora para dentro. Mas o processo falha, porque o macaco, cego, não pôde lhe dar o ódio desconhecido. Trata-se, enfim, de uma relação bivalente para o olhar que não se completa, pois uma das partes é destituída da capacidade visual. A falha ocorre tal como acontecera com os animais anteriores. O olhar da mulher recebe o amor, mas não consegue se desfazer do seu amor. O seu olhar se mostra como uma via de mão única.

            A narradora parece insistir na urgência de que se complete o ciclo do olhar. Receber o mundo externo e devolver o interno. Dessa forma se dissolveriam os limites, ou em outras palavras, segundo a leitura de Regina Pontieri (1999:148):

            Em ‘A cidade sitiada’, o entrelaçamento pelo qual as pessoas se coisificam na mesma medida em que objetos e seres não-humanos se humanizam, o que o inanimado se anima e vice-e-versa, configura a situação de busca do apagamento da dicotomia entre sujeito e objeto de visão, em favor de um olhar que capte o visível a partir de sua realidade própria.

            Ocorre que em “O búfalo” as dificuldades se impõem porque o olho da alteridade no macaco é vazado, não recebe o outro, não tem luz. Marilena Chauí mapeou as múltiplas nuanças para o olhar vinculando-o à luz, luz dos astros, luz dos olhos – pháos – e à ausência dela – phaiós – como sombrio, escuro, luto[4]. A escuridão da catarata se transforma em impedimento intransponível, porque se há breu a luminosidade não logra entendimento algum. Só para pensar melhor: a luz é associada à inteligência, ao conhecimento, ao divino. Mas também à cosmogonia, isto é, a superação das trevas. O Gênesis, por exemplo, relata o primeiro ato de Deus: “Faça-se a luz!”.  Pois é justamente a situação contrária que se coloca diante do leitor!  A escuridão do olho incapaz de ver remete, via de regra, à escuridão da alma daquele olho; no entanto, por um paradoxo bem ao gosto de Clarice, o dono do olho seco e cego – o macaco velho – oferta, de braços abertos, um véu branco gelatinoso cobrindo a pupila, nos olhos a doçura da doença (p. 150; grifo meu). Curiosamente, é neste episódio, o dos macacos, que a negação do olhar adquire um caráter mais, digamos, sanguinário, ou melhor dizendo, possibilidade de morte. Os macacos ocupam o espaço de um parágrafo relativamente longo se comparado aos dedicados aos outros animais, com exceção do búfalo. O verbo matar, declinado na primeira pessoa e no futuro do pretérito, aparece cinco vezes, o que indica uma reiteração significativa. Mesmo carente de um aprofundamento maior, posso remeter este momento do conto a um contexto de prenúncio do que acontecerá mais adiante: não apenas a morte ronda o leitor, mas uma morte matada.

A ausência de luz, na receptividade do olhar do macaco, conduz ao ambiente trevoso, noturno, mortífero. De certa forma, há aqui ressonância das características que apontei anteriormente, relativas à conjunção “mas”. Não foi por mera casualidade que o conto inicia por: Mas era primavera. O sistema de oposição começa a ficar mais claro. Aquilo que o “mas” opõe, e que não é dito, passa a fazer sentido. “Primavera” em sentido adversativo à “morte” (já que a mulher diz que mataria cinco vezes). E, apesar de ser lugar-comum, é interessante lembrar que a primavera é associada à vida e ao renascimento.

Bem, a questão do renascimento é mais espinhosa, ainda mais quando temos de associá-la à morte; mas mesmo assim gostaria de observar que das estações, a primavera é consagrada a Hermes, o mensageiro dos deuses. No Oriente, a estação representa uma espécie de comemoração anual do princípio do mundo. Depois do triunfo do sol no equinócio da primavera, a terra ressurge prenhe de luz e vida das enchentes do inverno, assim como o mundo surgiu do caos depois da derrota do dragão das águas (LURKER; 2003:565). A primavera principia uma nova era. E, no entanto, pela adversativa, o conto de Clarice busca uma negação da ciclicidade da vida na medida em que adversa a primavera a qualquer coisa ainda não dita.

            O percurso da mulher é marcado pela busca desesperada de encontrar algum animal que fosse capaz de lhe devolver o sentimento desconhecido, e que necessariamente fosse oposto ao que ela vê espalhado por todo o zoológico. Mesmo no macaco velho e cego, cujo olhar, ainda que vazio, tem a sua forma externa coberta por um véu branco gelatinoso e doce. O que ela deseja, talvez, seja tornar-se visível para alguém. Nenhum animal a olha! Ela olha o mundo e, quando parece que o mundo finalmente vai olhá-la, descobre a cegueira deste mundo na cegueira do macaco. E, provavelmente, nem o homem a quem ela diz odiar a tenha olhado: ‘Eu te odeio’, disse ela para um homem cujo crime único era o de não amá-la. ‘Eu te odeio’, disse muito apressada. (p. 151).

Merleau-Ponty afirmava que (...) quem vê não pode possuir o invisível a não ser que seja por ele possuído, que seja dele, que, por princípio ... seja um dos visíveis, capaz, graças a uma reviravolta singular, de vê-los, ele que é um deles (MERLEAU-PONTY apud PONTIERI; 1999: p. 148). Trata-se, em suma, do apagamento das diferenças entre o eu e o outro, fazendo-se uma coisa só. No caso do conto de Clarice, isso quer significar a inundação do sentimento desconhecido que há, ou deveria haver, segundo a protagonista, em um dos animais visitados no zoológico.

            O olhar da mulher, ou aquilo que ela foi buscar no zoológico, pressupõe uma concepção de corpo que consiga aderir à matéria das coisas, que se revele, ela – a mulher -, matéria e coisa, para que o ato do olhar seja um produto efetivo do corpo e não apenas do espírito. Daí a frustração a cada etapa do percurso, porque a adesão não se completa e o olhar não se realiza plenamente, nas duas vias das quais deve participar – o mundo interno sendo inundado pelo mundo externo, como explicou Marilena Chauí. Falta a ação do corpo do objeto visto, isto é, dos animais propriamente ditos que, perfilados, somam sete tentativas[5], nas quais devem ser incluídas, também, as mães e as crianças da montanha russa como uma representação animal do cosmos.

            Por outro lado, preciso afirmar que é o olhar que encaminha o conhecimento. E o conto nada mais é do que um caminho de ascese. Naturalmente uma ascese anormal, melhor dizendo, não-usual. Com este encaminhamento, como não mencionar o mito do labirinto? Mas antes é necessário refazer o mesmo percurso da mulher em suas etapas animalescas, porque estas etapas vão gradativamente indiciando a aprendizagem necessária para que a mulher execute aquilo a que viera realizar.

 

A MULHER VIU O CÉU INTEIRO E UM BÚFALO – a transcendência, enfim

              O percurso físico da personagem se soma ao percurso da aprendizagem espiritual daquilo que tanto busca. Esta transcendência almejada só é alcançada pela vivência paulatina de pedaços de sentimentos. O desfile dos animais diante de seus olhos – na verdade os animais estão passivos em suas jaulas; é a protagonista quem desfila diante dos animais sem que estes a vejam – assume uma iniciação, cuja estrutura lembra muito a função dos bestiários medievais. Só para me respaldar na repetição de temas, a presença de animais na ficção de Clarice não é ocasional e aleatória. O clássico exemplo da barata, ou melhor, da gosma branca da barata, que tanta perplexidade causou em Paixão segundo GH, é um indício de que os animais lhe são familiares e através deles ela expressa uma qualquer coisa muitas vezes escondida em simbologias inusitadas. Assim ocorre também com a galinha, com os cavalos, com os cães, etc.

Em “O búfalo” a perfilação de certos animais, todos mamíferos, se enfileiram como uma amostragem da natureza com fins pedagógicos. E mais que isso: uma inversão nos pólos que comandam os bestiários, de tal forma que a natureza ganha relevos de fim e não de início, porque na Idade Média aquilo que se julgava imerso na natureza servia como explicação para uma aprendizagem “zoológica” e espiritual. Tentarei me explicar melhor.

            O vocábulo “bestiário” vem do latim “bestiarius”, cuja referência à besta é inequívoca; esta, por sua vez, consta como sinônimo para animal de carga. É assim que recomeço minha leitura após as considerações sobre a partícula adversativa “mas” e sobre os olhares que não se completam. Então, retornando à definição de dicionário, observo que ela me conduz a quase nada. É preciso buscar mais informações. Os bestiários, cuja origem é a Idade Média, são, a rigor, uma espécie de compêndio de animais imaginários e/ou reais com suas características e suas funções, além de muitas vezes apresentarem fábulas fantásticas. O recurso à simbologia desses animais é imenso.  Não obstante, quem procurava o bestiário, buscava conhecimento. Certamente tratava-se de um conhecimento mediado por imagens fortes, estranhas e não usuais. 

            Mas antes, algumas considerações são necessárias. A formulação de um bestiário obedece algumas importâncias. Na opinião de André Siganos (1997:117), os animais que compõem um bestiário apresentam três casos de figura. Primeiro caso de figura: o animal pode ser o próprio objeto de um mito, cuja cadeia significante poderá ser trabalhada pela literatura sob a forma emergente (na sua inteireza significativa, melhor dizendo, mitêmica) ou sob a sua flexibilidade (com decréscimos de mitemas, de forma a não descaracterizar o mito)[6] – ele dá o exemplo do “sintagma minotauro”, que encerra uma engrenagem fundamental, a saber: monstro + devoração + labirinto. Segundo caso de figura: trata-se do animal integrado a um mito mas do qual não é objeto, embora seja atuante – o exemplo é a abelha, que cruza vários mitos com funções diferenciadas: a nutriz de Zeus, a companheira de Apolo, a lágrima de Rê, a mensageira dos deuses, mulher desejável, etc. Terceiro caso de figura: animal hierofânico ou um atributo de um deus, mas é preciso que, nesses casos, esses animais tenham conhecido um rico destino literário – Siganos refere o bode que, independente de fazer parte do séquito de Dionísio, alcança o status de mítico (para compor um bestiário) porque ele é uma metamorfose do deus e também porque entra na composição do Sátiro.  

Por outro lado, gostaria de referir que Gilbert Durand dizia que o simbolismo animal, visto de relance, é bastante vago porque parece ser comum demais. A primeira vista, os animais são percebidos em duas categorias: negativas e positivas. No mais das vezes, entre aqueles enfileirados como valorização negativa estão os do baixo, a exemplo dos répteis, dos ratos, das baratas, dos pássaros noturnos, etc. Já naqueles de valorizações positivas estão os do alto, como o cordeiro, a pomba e os animais domésticos. No entanto, esclarece o filósofo, qualquer arquetipologia deve abrir com um Bestiário e começar por uma reflexão sobre a universalidade e a banalidade do Bestiário (DURAND; 1989:51). A observação de Durand de que nada nos é mais familiar, desde a infância, que as representações animais (DURAND; 1989:51) parece explicar algumas presenças na literatura. Por outro lado, a simbologia dos animais não é rasteira e imediata. Diz Durand (1989:52):

É necessário precisar este ponto: para além da sua significação arquetipal e geral, o animal é susceptível de ser sobredeterminado por características particulares que não se ligam diretamente à animalidade. (...) As interpretações são diferentes quando se trata da escolha de animais agressivos que refletem sentimentos poderosos de bestialidade e de agressão ou, pelo contrário, quando se trata de animais domésticos.

Como se vê, o assunto requer cautela e paciência. Entretanto, algo pode ser considerado como consenso: o homem tem assim tendência para a animalização do seu pensamento e uma troca constante faz-se por esta assimilação entre os sentimentos humanos e a animação do animal (1989:52). Dos bestiários, posso dizer que eles vão fornecer significações para além da zootecnia com a qual, em primeira instância, foram criados na Idade Média.

Em Clarice, há o adensamento das possibilidades significativas. Os animais adquirem uma pluralidade que vai muito além do paradigmático Bem versus o Mal. Em “O búfalo”, especialmente, o passeio no zoológico inverte o binômio maniqueísta alterando seu funcionamento. Tudo o que parece significar, remete ao seu oposto; assim como toda a vida leva à morte, a selvageria contida dos animais conduz a mulher ao incontornável ódio. Novamente relembro a adversativa com que o conto inicia: Mas.

O percurso se constrói a partir de uma vivência labiríntica. E as paredes deste labirinto, notadamente um espaço físico, são feitas de animais.    

- os leões: o casal de leões é emblemático, porque são os primeiros com os quais a mulher inicia sua ascese. Pertencem à família dos felinos, e são dos carnívoros um dos mais ferozes. Eles podem simbolizar tanto o poder divino de Cristo, que era conhecido como “leão da tribo de Judá”, quanto tornar-se a imagem do abismo devorador, pois ser entregue aos leões significa ver a morte. Na simbologia dos elementos cosmogônicos, o leão é atribuído ao fogo. Em “O búfalo”, entretanto, o casal de leões encarna o amor tranqüilo e impassível diante do mundo. Faz-se assim uma oposição absurda entre a mulher e o casal de leões, em que este é amoroso e aquela é revoltada.

- a girafa: trata-se de um animal de características diferentes dos leões; é um ruminante, o que lhe confere um caráter um tanto passível e aéreo (por conta do comprimento de seu pescoço) e, como tal, é geralmente presa dos carnívoros. Para Clarice, a girafa é um ser inocente e virginal, que não tem consciência de si nem de nada. A oposição se dá entre a simplicidade e a pureza da girafa e a doença da mulher.

- o hipopótamo: terceira besta a ser observado pela mulher. Trata-se de animal oriundo das mitologias egípcias, nas quais, via de regra, era vinculado às forças negativas do mundo. No entanto, a fêmea encarnava uma simbologia relacionada à fecundidade. Já para as religiões derivadas do Velho Testamento, o animal significava o conjunto dos impulsos e dos vícios humanos que o homem não consegue eliminar, pois é manchado pelo pecado original. Essa massa colossal de carne, em Clarice, adquire outro significado; é a resignação do ser diante da vida. A mulher, em sentido adversativo, recusa-se a simplesmente ser e a não pensar-se.

-  macacos: aparecem em comunidade; os leões formam um casal fechado, a girafa e o hipopótamo estão solitários, mas os macacos formam um grupo maior constituindo, parece, uma família. Talvez devido á sua proximidade taxionômica com o homem, sua simbologia é muito diversificada. Tanto podem revelar a indecência, a lascívia, a agitação, a insolência e a vaidade quanto uma sabedoria tripartite dos três macacos em que um fecha os olhos, o outro a boca e o terceiro os ouvidos – não ver nada, não ouvir nada, não falar nada. Contudo em “O búfalo” sua significação adquire um caráter muito particular. É a vida em família, a vida amorosa de uma família, a balbúrdia feliz de uma família e na qual o macaco mais velho aproxima-se perigosamente da humanidade humilde e doce. A cegueira do velho macaco devolve à mulher a inocência e a felicidade de ser amado. Adversamente a mulher deseja matar. Mas ainda não mata, porque não logrou o ódio necessário.

- elefante: de forma geral, o elefante é símbolo da sabedoria e da força, também traz a sorte e a vida longa; para a cristandade é significação de castidade. Contudo em Clarice, o elefante merece apenas algumas observações. Ele é poderoso mas não usa seu poder, ele é grandemente assustador mas exala bondade e docilidade, e é oriental. Não apenas em oposição ao ocidente, mas como adjetivo de uma certa filosofia que busca a paciência. Ela, a mulher, opõe-se ao elefante porque ela não almeja a sabedoria que é peculiar ao animal.

- camelo: além de ser a montaria que ajuda a atravessar o deserto, o camelo é também símbolo da sobriedade, do orgulho e da teimosia. Para os judeus é um animal impuro e para a cristandade é relacionado à humildade e à obediência, mas igualmente à ira, à preguiça e à limitação. O camelo do zoológico de Clarice é a encarnação da paciência, porque rumina o alimento interminavelmente. A protagonista se opõe ao camelo na medida em que não consegue sequer comer; a vontade de matar transforma-se, diante do cheiro do camelo, em cólicas de fome. Mas ela não come, ao contrário do animal que rumina sua comida pacientemente.

-  as crianças e os brinquedos do parque: encerram uma categoria a parte neste bestiário de Clarice, porque não se configuram como animais simbólicos desviados de suas significações usuais. Entretanto, posso reforçar a relação de oposição expressa na conjunção coordenativa. A alegria contagiante das crianças no brinquedo – a montanha-russa – é contraposta à seriedade da mulher, que vê no “grito das namoradas” uma ofensa, uma grande ofensa à sua busca, agora, pela primeira vez dita, morte às gargalhadas, morte sem aviso de quem não rasgou antes os papéis da gaveta, não a morte dos outros, a sua, sempre a sua. (p. 153). E algo muda, finalmente.

- o quati: animalzinho que antecede o búfalo; pequeno carnívora que devolve  o olhar à mulher, na verdade, o primeiro a notá-la. Para Clarice, o quati, talvez por ter olhos pequenos, assume a representação da curiosidade e a protagonista em sua posição oposta aos animais esconde-se do animal, ou melhor, dos olhares indagadores do animal.

            Este passeio labiríntico pelo zoológico que o conto encerra conduz a mulher e o leitor a um desenlace inusitado. O bestiário ensina a natureza das coisas; os animais clariceanos ensinam o caminho da intimidade, mas de uma intimidade tão intensa que podemos chamá-la como a própria autora chamou em diversas ocasiões: o coração selvagem.

            O bestiário está quase completo. Retomando o olhar, ou melhor, a importância do olhar para a economia e para o desenlace do conto, lembro que a mulher só atinge a consciência de seu desejo quando no confronto do olhar indagador do quati. Agora sim seu olhar encontra complementação em outro olhar. Reproduzo a narradora:

            Então, nascida do ventre, de novo subiu, implorante, em onda vagarosa a vontade de matar – seus olhos molharam-se gratos e negros numa quase felicidade, não era o ódio ainda, por enquanto apenas a vontade atormentada de ódio como um desejo, à promessa do desabrochamento cruel, um tormento como de amor, a vontade de ódio se prometendo sagrado sangue e triunfo, a fêmea rejeitada espiritualizara-se na grande esperança. Mas onde, onde encontrar o animal que lhe ensinasse a ler o seu próprio ódio? (...) O mundo de primavera, o mundo das bestas que na primavera se cristianizam em patas que arranham mas não dói...(p. 155).

            Como se fosse um verso “chave de ouro” dos sonetos, este parágrafo desvenda, depois de inúmeras vezes lido, a razão do conto. A complementação do bestiário é dada pelo búfalo, que não por acaso nomeia o texto.

- o búfalo: precedido de artigo definido, revela-se na singularidade daquele exato animal, como uma individualidade a ser encontrada pela protagonista. E assim foi, porque é com ele que se dá a ascese particular, a transcendência da vida, a redução aditiva da adversativa, o encontro e entendimento dos olhares. Na simbologia usual, o búfalo é tratado como o boi e, portanto, assemelha-se a este na simbologia da paciência, do sofrimento e da passividade; curioso é que o búfalo, na China, é usado para o trabalho no campo e por isso é um dos símbolos da primavera. Por outro lado, o búfalo que é mais rústico, mais pesado e mais selvagem do que o boi, na iconografia hindu é a montaria e o emblema da divindade da morte.

            Chego, assim, ao final do bestiário. O encontro com o búfalo resolve a busca da protagonista. Ela encontra certa paz,enfim. Mas que búfalo é este? A narradora diz que é negro, que tem os passos vagarosos, e que a poeira sob seus cascos é seca; e ele é calmo.  A mulher vê o negror do búfalo enquanto sente que uma coisa branca espalhara-se dentro dela, branca como papel, fraca como papel, intensa como uma brancura. Que descrição interessante e inusitada! O jogo cromático entre a negrura externa do búfalo faz um contraste harmônico e paradoxal com a brancura interna dos sentimentos da mulher. Ele é negro, ela é branca; ele é calmo, ela ansiosa; na conjugação dos contrastes entre a mulher e o animal surge a mistura entre o amor e o ódio: Eu te amo, disse ela então com ódio para o homem cujo grande crime impunível era o de não querê-la. Eu te odeio, disse implorando amor ao búfalo (p.159). Além dos sentimentos que se mesclam, a imagem do homem amado-odiado se gruda à do animal, compondo um amálgama que faz o leitor definitivamente entender o que ela viera fazer no zoológico em um dia primaveril.

 

OLHOU SEUS OLHOS – o labirinto se fecha e se abre

            É neste momento que a categoria do Espaço se abre, definitivamente, a uma outra lógica, para uma outra apreensão. A referência espacial ao labirinto não é explícita, contudo é inerente ao desenlace da narrativa. Só se vêem seus contornos, com suas curvas, com seus espaços íntimos, com suas esquinas que escondem desvelamentos, depois de lhe achar o centro espacial para onde tudo converge – o búfalo, a mulher, a transcendência, a primavera.

            O encontro com o búfalo remete ao centro do labirinto percorrido. É lá, na última jaula, que ela descobre o centro do seu universo: Lá estavam o búfalo e a mulher, frente a frente. Ela não olhou a cara, nem a boca, nem os cornos. Olhou seus olhos. (p. 159). Labirinto de paredes moles, de curvas inesperadas, feito de jaulas que contém animais. Mas e o que é o labirinto? Para a mitologia, a origem do labirinto é o palácio cretense de Minos, onde estava preso o Minotauro. Teseu, o herói grego desmemoriado, só consegue encontrar a saída com a ajuda de Ariadne, a quem esquece posteriormente[7]. Do mito, a narrativa nuclear é bastante conhecida. Minos, rei de Creta, por vergonha, resolveu encarcerar o fruto monstruoso da traição de sua esposa Persifae com o Touro, presente de Posidon. Minotauro, a criança, tinha corpo de homem e cabeça de touro. O rei chamou o grande construtor Dédalo para que este construísse um palácio (o labirinto) composto de inúmeras salas e corredores que confundisse qualquer visitante, de forma que fosse impossível sair de lá. Ocorre que, para acalmar o monstro, era necessário sacrificar jovens em determinadas épocas do ano. Um desses jovens, Teseu, oferece-se para terminar com este castigo. Com a ajuda da princesa Ariadne, que lhe entrega um fio e uma coroa brilhosa, consegue chegar ao centro do palácio, matar Minotauro e voltar pelo mesmo caminho que entrou, e o fez usando o estratagema oferecido pela moça – seguindo o cordão que usara para demarcar o caminho percorrido[8].  

Mas de que é constituído essencialmente o mito? Via de regra, o labirinto é um entrecruzamento de caminhos, dos quais alguns deles não têm saída. O que se procura é o centro, no qual o iniciado deverá encontrar aquilo que tanto busca: uma aprendizagem transcendental. No centro encontra-se uma figura invulgar, uma mescla de homem e de besta. É com esta criatura que o iniciado terá completada sua ascese. Na literatura, muitas são as reatualizações deste mito.

            Gostaria de lembrar que para a Filosofia do Imaginário, o mito nunca morre. Afirmo isso pensando na idéia vulgar de que o mito parece ser simples. Esta aparência, no entanto, se desfaz quando pensamos nas inúmeras definições para o mito, quer antropológicas, psicanalíticas, sociológicas, etc[9]. Relativamente ao mito e suas inserções nas culturas humanas, Gilbert Durand observou que no decurso do tempo, eles se rearticulam, engordam e emagrecem, de acordo com as premências do momento em que são re-atualizados. Durand chamou esse processo de “bacia semântica”.  Não quero, aqui, analisar todas as seis etapas cronológicas irregulares, sobre as quais se baseia a teoria formulada pelo antropólogo. Mas elas são: escoamento, separação das águas, confluências, nome do rio, ordenamento das margens e meandros e deltas[10]. Interessante reparar que essa metáfora potamológica dá conta dos processos de re-atualizações dos mitos. Durand (1996:155) diz que:

Não há mito inicial, puro (...). Qualquer mito não é senão o conjunto de suas lições, poder-se-ia mesmo dizer de suas leituras(...) O mito decompõem-se em alguns mitemas indispensáveis que lhe conferem sincronicamente o sentido arquetípico, mas, diacronicamente, ele é apenas constituído pelas lições circunstanciadas por esse acolhimento, essa leitura muito particularizada (...) Há que sublinhar este paradoxo, em que a permanência só é conferida pelas variações.

O caso de “O búfalo” parece confundir os mitos que nele se percebe, porque além do Labirinto, posso apontar também o mito de Perseu e as górgonas. Contudo, o labirinto e o Minotauro tornam-se especiais porque nada se parece com eles. Explico melhor minha opinião.

Para “O búfalo”, o mito é reatualizado através de supressão de vários mitemas e com alterações na composição de outros, mas o motivo central do mito do labirinto permanece. Arrolo abaixo as etapas:

- a época da renovação agro-pastoril, isto é, a primavera, quando as vítimas sacrificiais eram colocadas nas entranhas do palácio de Minos para serem devoradas pelo monstro; além da referência à estação do ano, é curioso observar que a primavera é marcada pela renovação da vida, e no conto há a renovação da morte; talvez daí venha a anáfora com a conjunção adversativa, provocando a oposição dos termos “vida-morte” – Mas era primavera;

- a busca por uma aprendizagem que propiciasse para a protagonista alcançar um objetivo definido, ou seja, aprender a odiar para poder cometer o suicídio – Mas onde, onde encontrar o animal que lhe ensinasse a ler o seu próprio ódio?;

- um percurso a ser seguido e enfrentado, tal como ocorre no mito em que o herói adentra os corredores sinuosos do palácio de Minos; no conto, as paredes intransponíveis do labirinto dão lugar à sucessão de jaulas que contêm animais mamíferos (a mesma classe dos humanos!) e que assume a função do palácio, embora a mulher esteja a céu aberto – Com os punhos nos bolsos do casaco, olhou em torno de si, rodeada pelas jaulas, enjaulada pelas jaulas fechadas;

- o encontro com a criatura bestial, que no mito é uma conjugação de animalidade e humanidade, pois é metade homem, metade touro; no conto, a autora guarda a proximidade com o minotauro, porque o animal escolhido para o desenlace final da aprendizagem é um búfalo, da mesma família dos bovinos; curiosamente, o verbete “búfalo” está sempre acompanhado do verbete “touro” nos dicionários especializados em simbologia dos animais e em dicionários de mitos – o búfalo negro e tranqüilo de ódio;

- e, por fim, a aprendizagem que se completa quando o herói olha o monstro e tem a visão de si nos olhos da besta-fera, alcançando, assim, a sabedoria necessária para estar apto a sair do labirinto; no conto, a saída fica por conta do almejado suicídio que se concretiza somente ao final – E os olhos do búfalo, os olhos olharam seus olhos (...) Inocente, curiosa, entrando cada vez mais fundo dentro daqueles olhos que sem pressa a fitavam, ingênua, num suspiro de sono, sem querer nem poder fugir, presa ao mútuo assassinato. (...) Em tão lenta vertigem que antes do corpo baquear macio a mulher viu o céu inteiro e um búfalo (p.160) .

Clarice reatualiza o mito através de uma narrativa densa, sinuosa, inesperada. O palácio de Minos transforma-se em um simpático zoológico que além de animais enjaulados (como possibilidades de minotauros) também tem crianças com suas mães e namorados descompromissados brincando na montanha-russa. A autora articula estes elementos composicionais do mito sem que lhes revele de imediato as respectivas funções para a economia do conto. Contudo o leitor pressente que algo estranho e terrível acontecerá no interior deste zoológico, mas não percebe que a cada animal visitado, como etapa ascensional, a escritora-narradora vai delineando misteriosamente as paredes deste labirinto. E nós, leitores apaixonados, mais uma vez aprendemos que

O labirinto também conduz o homem ao interior de si mesmo, a uma espécie de santuário interior e escondido, no qual reside o mais misterioso da pessoa humana (...) É ali, nessa cripta, que se reencontra a unidade perdida do ser, que se dispersara na multidão dos desejos (CHEVALIER & GHEERBRANT; 1997:531).

            Como queria Bachelard, “o conto é meu”. Fala de mim e de todos nós que o lemos, pois para além da pequena história cotidiana de uma mulher desamada que se suicida, está a narrativa de um mito, e os mitos –  sabemos – contam coisas das nossas consciências.

 

BIBLIOGRAFIA

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço – introdução. São Paulo: Martins Fontes, 1993

BACHELARD, Gaston. O labirinto. In.: A terra e os devaneios do repouso. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BALANDIER, Georges. O Dédalo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

BECKER, Udo. Dicionário de símbolos. São Paulo: Paulus, 1999.

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CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997.

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DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. Lisboa: Editorial Presença, 1989.

DURAND, Gilbert. Campos do imaginário. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.

DURAND, Gilbert. O imaginário. Rio de Janeiro: Difel, 2001.

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LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978.

LURKER, Manfred. Dicionário de simbologia.São Paulo: Martins Fontes, 2003.

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MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

MERLEAU-Ponty, Maurice. O olho e o espírito. Águeda-Lisboa: Veja, 2000.

PONTIERI, Regina. Clarice Lispector – uma poética do olhar. Cotia, Ateliê Editorial, 1999.

SOUZA, Carlos Mendes de. Clarice Lispector – figuras da escrita. Braga (Portugal): Universidade do Minho, 2000.

VERNANT, Jean-Pierre. A morte nos olhos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.

 



[1] Programa de Pós-graduação em Letras; Instituto de Letras e Artes; Universidade Federal do Rio Grande – FURG; CEP: 96200-000, Rio Grande, RS, Brasil – raquelrolandos@hotmail.com.
[2] Referência ao conto “Uma galinha”, do livro Laços de família.
[3] Estou usando a seguinte edição: LISPECTOR, Clarice. Laços de família. 9ª edição. Rio de janeiro: José Olympio, 1978. Gostaria de esclarecer que todas as citações do conto “O búfalo” serão retiradas desta edição com o indicativo da página.
[4] Cf. CHAUÍ, Marilena. Janela da alma, espelho do mundo. In.: NOVAES, Adauto. O olhar. São Paulo: Cia das Letras, 1988.
[5] Certamente o número sete é carregado simbolicamente; no entanto, por força de necessidade de coesão, não me deterei neste aspecto.
[6] Embora Siganos não mencione, lembro aqui de Gilbert Durand acerca de suas idéias relativas à bacia potamológica para as constantes reatualizações de mitos. Esta metáfora, a da bacia potamológica, ilustra o processo através do qual os mitos engordam e/ou emagrecem em suas composições mitêmicas ao longo de um determinado arco temporal. Para maiores detalhes, ver DURAND, Gilbert. Perenidade, derivações e desgaste dos mitos. In.: Campos do Imaginário. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.
[7] Não se trata, agora, de desvendar as relações míticas dos mitemas que compõem o mito de Teseu, um dos quais é o Minotauro e o labirinto. Para esta questão, remeto a SIGANOS, André. Le minotaure et son mythe. Paris: PUF, 1996.
[8] Muitas leituras interessantes têm sido feitas ao longo dos anos sobre este mito; além da referência da nota anterior, indico igualmente o livro BALANDIER, George. Dédalo. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
[9] Estas referências também são inúmeras, mas tenho aproveitado estudos relativos aos mitos de CAMPBELL, Joseph. (Org.) Mitos, sonhos e religião. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001; ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. Lisboa, Edições 70, s/d. RUTHVEN, K.K. O mito. São Paulo: Perspectiva, 1997; BIERLEIN, J. F. Mitos paralelos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004; além dos já clássicos dicionários de mitos e mitologias, entre outros textos.
[10] Sobre o assunto, ver DURAND, Gilberto. Perenidade, derivações e desgaste do mito. In.: Campos do imaginário. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.
 

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